Seguem três pareceres sobre o emprego de presidenta como feminino de presidente. Vêm eles a propósito da eleição da primeira mulher para a Presidência da República do Brasil — e a primeira, também, em qualquer país de língua portuguesa — que, por sua explícita vontade, se intitula, desde 1 de Janeiro de 2011, «a presidenta de todos os brasileiros». E é como tal — presidenta — que se regista no portal do Governo brasileiro. Uma questão decorrente da profunda alteração de comportamentos e estatutos sociais, verificada desde princípios do século XX, com as mulheres assumindo funções e cargos políticos, administrativos e profissionais exercidos até então apenas pelos homens.
No Ciberdúvidas, há várias respostas anteriores, nem sempre convergentes, que abordam os problemas causados pela necessidade de formar a palavra do género feminino correspondente a substantivos que designam certos cargos e ocupações como juiz, bombeiro, chanceler — e o caso em apreço, o de presidente. Esta discussão acaba por abranger ainda outros substantivos que oscilam do mesmo modo, entre a uniformidade para os dois géneros e a disponibilidade de uma forma de feminino morfologicamente distinta do masculino (por exemplo, elefante, elefanta).
Aos consultores que acederam a participar nesta discussão, os nossos agradecimentos.
1. Sobre o uso de presidenta no Brasil (Amílcar Caffé, Brasil)
A discussão é resultado da eleição de Dilma Roussef para a presidência do Brasil. A eleita decidiu para flexão para o feminino — mais uma reafirmação da questão do género no resultado da votação.
A partir daí, houve uma divisão. Os documentos oficiais brasileiros passaram a tratar Dilma como a «presidenta do Brasil». Mas alguns meios de comunicação optaram por chamá-la de presidente.
Os dois principais dicionários brasileiros — o de Aurélio Buarque de Holanda e o de Antônio Houaiss — e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicado pela Academia Brasileira de Letras (entidade que tem a função de indicar a norma da língua portuguesa para o Brasil), registam a forma presidenta como feminino de presidente.
No entanto, o jornal Folha de S. Paulo afirmou que vai utilizar a forma presidente ao referir-se a Dilma. Em texto publicado no jornal, a consultora de língua portuguesa da Folha, Thaís Nicoleti, afirmou que as duas formas são corretas, «mas a feminina é pouco usada». O colunista desse jornal que trata da língua portuguesa acrescentou que a flexão da palavra no feminino «causa estranheza aos leitores».
A mesma linha segue o jornal O Globo, que sempre utiliza a forma presidente para tratar Dilma Roussef. Na revista Veja, o colunista Lauro Jardim anunciou que vai tratar Dilma como presidente. Já o jornal O Estado de S. Paulo adoptou uma postura ambígua, com textos na mesma edição tratando Dilma tanto como presidente quanto como presidenta.
Por trás dessa discussão está uma questão que ultrapassa a linguística. Concordo com Thaís Nicoleti que a forma feminina é pouco utilizada. Acho que é certo o que diz com Pasquale Cipro Neto, a forma presidenta causa estranheza aos leitores — eu prefiro o termo estranhamento, nome de uma figura de retórica que busca marcar pontos numa discussão ao empregar construções ou palavras pouco usuais ou em situações pouco comuns. Não considero que apenas por que Dilma Roussef optou por usar uma forma seja razão suficiente para que tenhamos de usar.
Acredito que esses argumentos não justificam deixar de lado a utilização de presidenta. Primeiro, porque é uma forma que não entra em confronto com as regras gramaticais. Em segundo lugar, porque sou a favor da utilização de formas flexionadas: poetisa, mestra, chefa, sargenta.
Se observarmos, são normalmente substantivos que se referem a posições de relevo — nas quais não estamos habituados a ver uma mulher. A língua tem história e tem ideologia. É formada por influências das regiões e das classes que têm o poder. Se falamos chão em vez de plano, é porque na região e nos estratos sociais dominantes no período em que o português se consolidou a utilização do ch- substituiu o pl-. Mas vivemos numa época em que temos a possibilidade de escolher o caminho da língua. Temos cada vez mais mulheres a assumir posições de relevo e de chefia na sociedade. É natural que a língua possa dar resposta a isso, com a sua flexão de género.
[Sobre esta polémica no Brasil, ver ainda este dois textos: Dilma Rousseff — presidente ou presidenta do Brasil? + Graça Foster não quer ser "presidenta"]
2. A questão de presidente/presidenta em Portugal e no Brasil (Margarita Correia, Portugal)
Quanto à questão da presidente/presidenta penso o seguinte:
— Em Portugal, a forma culta e única aceite em discurso formal é presidente — os nomes acabados em -ente são comuns de dois. Existem, porém, formas populares em que se constrói o feminino em -a — estudanta, sargenta, comercianta. Estas formas têm um cunho pejorativo.
— No Brasil, penso que a situação não será muito diferente. Porém, dado o empenho da Dilma Roussef em se chamar a si própria presidenta (numa atitude de clara afirmação feminista — e, quem sabe?, populista), o termo acabará certamente por entrar nos dicionários sem marca de uso, assumindo ser aceite na norma culta.
3. O feminino das palavras infante, governante e elefante, a propósito da correcção de presidenta1 (Maria Regina Rocha, Portugal)
Como ponto prévio, direi que a dúvida apresentada diz respeito a três palavras de natureza diferente, e que estas palavras não terminam em -ente (como presidente), do particípio presente de verbos latinos, mas em -ante.
Analisemos, então, cada uma das palavras e por que motivo elas têm o morfema -a no feminino.
A palavra infante provém do latim infans, infantis, que significava «aquele que não fala», «aquele que tem pouca idade», «criança», passando, em português, também a designar «filho do rei, irmão do príncipe herdeiro», «irmão do rei». Na acepção de «criança», a palavra entra no português como substantivo comum de dois («o ou a infante») e assim é utilizada pelos clássicos. Entretanto, por influência do francês infante, feminino de infant, começa a utilizar-se o termo infanta, apenas na acepção de «filha de rei ou de rainha, não herdeira da coroa». O termo infanta não é, pois, formado do pretenso «masculino» infante, mas provém do francês.
Quanto à palavra governante, trata-se de um termo oriundo do francês, ainda sentido em meados do século XIX como um «francesismo inadmissível e desnecessário» (Novo Diccionario da Lingua Portugueza, por Eduardo de Faria, 1857). Com o significado de «pessoa que governa», é um substantivo comum de dois («o ou a governante»). A palavra governanta entra posteriormente no português, também proveniente do francês, com o significado de «mulher a quem estava confiada a administração de uma casa» e também vai ser sentida como galicismo, por ocupar o mesmo espaço que aia, ama, criada grave. Não é, pois, uma palavra formada do português governante, não tendo, naturalmente, o significado de «mulher que preside ao governo de um país ou dele faz parte».
Finalmente, o substantivo feminino elefanta já está registado há séculos em dicionários: provém do latim, de um substantivo que assume normalmente as duas formas (o elefante e a elefanta), não sendo formado de nenhum verbo. Há, no entanto, quem utilize apenas uma forma, considerando-o um substantivo epiceno, como é regra geral em grande parte dos nomes de animais.
Em suma, estas palavras terminadas em -e que formam o feminino com a utilização do morfema -a são excepções em relação à regra relativa à formação do feminino dos substantivos ou adjectivos terminados em -ente da mesma família de verbos cujos particípios presentes são reveladores de quem pratica a acção daquele verbo.
1 A autora refere-se aos casos de infante/infanta, governante/governanta e elefanta/elefanta, que foram dados como exemplos no pedido que o Ciberdúvidas lhe fez para dar este parecer.
Cf. Governo substitui “direitos do Homem” por “direitos humanos”