Maléfica: Mestre do Mal é o título português do novo filme da Disney, realizado por Joachim Rønning, cuja tradução nos deixa perplexos. O título original Maleficent: Mistress of Evil inclui o termo “mistress”, que tem uma referência assumidamente feminina, mas que, em português, foi traduzido com a forma do substantivo masculino mestre, opção que não se compreende uma vez que existe a palavra mestra, que corresponde ao feminino da palavra. No Brasil, a questão resolveu-se de forma mais airosa, pois o título foi traduzido como Dona do Mal. Podemos, no entanto, pensar que esta opção não corresponde a um erro, mas que esconde uma intenção também ela maléfica. Devemos daqui inferir que a personagem interpretada por Angelina Jolie oferece dúvidas quanto ao seu sexo biológico? Ou será o mal um atributo exclusivamente masculino? Certo é que ninguém pensará tratar-se de uma alusão ao facto de a personagem ser interpretada por uma figura excessivamente masculina. Afinal, é a Angelina Jolie!
Bem sabemos que o género gramatical, normalmente, não deve ser interpretado como uma referência ao género da entidade referida no mundo extralinguístico. Ou porque estamos perante entidades para as quais o género não é relevante, como é o caso de mesa. Ou pelo facto de o feminino não identificar o sexo da entidade referida, como acontece com tartaruga.
Com efeito, na grande maioria dos casos, o género gramatical é arbitrário e sem relação com a realidade designada. Todavia, quando se relaciona especificamente com seres humanos, a língua parece acusar uma maior sensibilidade à biologia. A comprová-lo, encontramos inúmeros exemplos tanto de nomes que flexionam no feminino (menino/menina, pato/pata) como de palavras específicas para cada sexo (homem/mulher, cavalo/égua).
É sabido que o facto de a realidade extralinguística ter afastado, durante muitos séculos, as mulheres de determinadas profissões ou atividades acabou por determinar a não necessidade de formas femininas para muitos dos substantivos existentes. Em tempos não muito longínquos, primeiro-ministro, ministro, juiz ou bombeiro (só para recordar alguns exemplos) eram palavras apenas com forma masculina. A entrada das mulheres nestas esferas acabou por forçar a criação de formas femininas que fizessem jus ao sexo da pessoa referida. Não obstante, como bem sabemos, há palavras que continuam a aguardar a sua vez de ter direito ao feminino, como pedreiro, soldado ou carteiro (como já dissemos noutro lugar).
Que a gramática precise de tempo para evoluir e para se ajustar à realidade que designa, é compreensível, mas que os falantes queiram fazer recuar a gramática não faz qualquer sentido. Numa época em que a consciência de género obriga muitos falantes a verbalizar femininos e masculinos («caros e caras…») ou a procurar formas de incluir o feminino na escrita (“@”), não se compreende que uma mestra seja reduzida a mestre. Não tenhamos medo de usar as palavras, sobretudo quando estão corretas. E não esqueçamos que as mulheres, quando querem, também sabem ser bem maléficas. Que ninguém tenha dúvidas que conseguem ser verdadeiras mestrAs!