«Há cada vez mais pessoas a falar português. Pelo menos é o que nos dizem os números: 261 milhões agora, 520 milhões em 2100. Mas há só um português, ou vários? E do que falamos quando falamos de falantes?»
Em cima da mesa está caldeirada – corvina, pimentos, batata, batata doce – arroz, feijão guisado. “É caldeirada mas é a caldeirada cabo-verdiana”, avisa Fausta Montrond, sentada na mesa da cozinha do apartamento onde vive, nas Mercês, arredores de Lisboa. “Trouxe frango grelhado e batatas fritas para o jantar dos meninos, porque eles gostam mais”.
Fausta nasceu há 32 anos em Chã das Caldeiras, na ilha do Fogo, Cabo Verde – uma aldeia de cerca de mil habitantes, no sopé do vulcão, “onde se faz o vinho Manecon”. Foi lá que fez a escola primária. Lembra-se muito bem de começar as aulas e de ouvir a professora a falar numa língua estrangeira. Era português.
Antes disso, o contacto com a língua tinha sido apenas através dos turistas que de vez em quando lá apareciam, ou nas novelas que passavam na única televisão da aldeia, colocada na cooperativa, onde havia um gerador, porque naquela altura a electricidade ainda não tinha chegado a Chã das Caldeiras. Sabia por isso algumas palavras, mas nada que lhe permitisse entender tudo o que a professora dizia. “Ela tinha de misturar frases em crioulo”, diz Fausta. “Só quando fui para Santiago, no quinto ano, é que era tudo em português. Era proibido o crioulo nas aulas”.
Com o seu filho Fábio, agora com 14 anos, não foi muito diferente: “Em casa toda a gente falava crioulo e só comecei a aprender português na escola”, na Cidade da Praia, onde viviam. “Não sabia bem os verbos, só o suficiente para desenrascar.” Só se sentiu mais confortável no sexto ano, ou seja, quando a família veio viver para Portugal.
Depois de ver que o filho mais velho, Paco, tinha dificuldades quando veio para a universidade em Lisboa (agora estuda contabilidade em Bragança), Fausta quis garantir que os dois mais novos tivessem “acesso a um ensino melhor”. Decidiu que Fábio e Ariana, de 10 anos, começariam mais cedo os seus estudos aqui e por isso se mudaram todos.
Dizem os números que o português é falado por 266 milhões de pessoas. Se tivermos em conta o crescimento demográfico dos países onde é língua oficial – centrado no continente africano – em 2050 serão 395 milhões, e em 2100, mais de 520 milhões.
Nesse último ano, a população de falantes dos países africanos (319.870 milhões) ultrapassará a do Brasil (190.423 milhões) – actualmente, são 209.568 milhões de brasileiros face a 58.061 milhões de falantes em Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe.
Os dados são de 2016, assentam nas perspectivas de crescimento populacional traçadas pelas Nações Unidas e são citados pelo Novo Atlas da Língua Portuguesa. Fazem do português uma das seis línguas mais faladas no mundo (os números vão variando consoante as fontes), e são também usados nos discursos oficiais sobre o apoio à expansão da língua.
Medir falantes é “quase impossível”
Falar da população dos países de língua oficial portuguesa não é o mesmo que falar da população de falantes de português. “É quase impossível de medir” quantas pessoas falam efectivamente português, porque o que se faz nas estatísticas da língua é apontar para quem a fala como língua materna ou de alfabetização”, ressalva Luis Antero Reto, professor catedrático do ISCTE e autor do Novo Atlas.
Em Timor-Leste, um relatório do Banco Mundial de 2011 aponta para uma população de falantes de português na casa dos 5%. Angola é o país africano com uma maior percentagem – 71% dos 25, 7 milhões de angolanos (85% destes nas áreas urbanas). Em São Tomé e Príncipe, é já metade da população que o utiliza como língua materna. Mas se olharmos para a Guiné-Bissau, por exemplo, o número desce drasticamente para os 15% (44% fala crioulo). Ainda assim, é em português que é feita a escolarização e é esta a língua da administração pública. O mesmo se passa em Moçambique.
Em 1890, havia uma única escola primária em todo o território moçambicano. Só com o fim das campanhas militares que resultaram numa ocupação sistemática, em 1918, é que a língua começa a ser mais falada por algumas camadas da população; a criação do “ensino indígena”, em 1930, vem alargar mais a instrução formal em português.
Paradoxalmente, foi a independência, em 1975, que trouxe as maiores mudanças. Se o censo feito cinco anos depois mostrava que o português só era falado por cerca de 25% da população, e constituía a língua materna de pouco mais de 1% dos moçambicanos, em 2007, os números mostravam que 50,4% da população falava português (com enormes discrepâncias entre o contexto urbano e rural), sendo que apenas 12,8% o falava maioritariamente em casa e 10,7% o consideravam língua materna.
Como noutros Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, temos então uma língua que é apresentada como um pilar da unidade nacional, mas que apenas é falada por metade da população. Quando um primeiro-ministro discursa na televisão, metade das pessoas a quem supostamente se dirige não o entendem. Essas mesmas pessoas estarão com acesso mais dificultado a certos postos de trabalho, a firmar negócios, ou a defenderem-se ou reivindicarem os seus direitos perante um juiz.
Para a larga maioria das crianças (90%, segundo os dados do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano de Moçambique), o português só começa a ser ouvido e falado quando entram na escola. De repente, toda a transmissão de conhecimento é feita numa língua estrangeira, sendo que a maior parte dos manuais e restantes materiais de aprendizagem são construídos no pressuposto de que o português é a língua mãe.
Falsa ideia de bilinguismo
Germano Almeida, que venceu no dia 21 de Maio o Prémio Camões (o mais importante prémio literário de língua portuguesa), afirmou já várias vezes que há uma “falsa ideia de bilinguismo em Cabo Verde”, e que o português tem de ser ensinado como língua estrangeira – o que entretanto já está a acontecer em várias escolas. Isto não quer dizer que concorde com a “defesa desmesurada” que se está a fazer do crioulo. “O crioulo não está em risco e o crioulo limita-nos, fecha-nos sobre nós próprios”, afirmou uma vez. E mais recentemente disse ao jornal Público: “Para mim a língua portuguesa tem o mesmo peso que a língua cabo-verdiana. Sou filho de pai português e de mãe crioula, cresci com as duas línguas, mas aprendi a escrever em português e não pretendo começar a escrever em crioulo. Eu expresso a cultura cabo-verdiana usando a língua portuguesa”.
Para Luis Antero Reto é perigoso fortalecer o ensino na língua mãe em detrimento do português. Afirma que “na África de expressão portuguesa existem mais de 55 línguas nativas, sem falar de crioulos. Como é que se vai alfabetizar as pessoas nessas línguas? Muitas não têm base escrita, não têm materiais pedagógicos, não têm conceitos para serem línguas de conhecimento e línguas complexas.”
A alfabetização, defende, deve ser feita em português, ainda que com ajuda da língua materna. “Como se arranjam professores, materiais escolares, livros, em macua, ou em kimbundo? Quanto mais se defenderem as línguas maternas menos mobilidade social as pessoas vão ter. Porque o ensino mais tarde vai ser nas línguas internacionais: no liceu, na universidade, no pós-universidade. Paradoxalmente, quem mais reivindica a identidade africana, é quem vai criar mais entraves ao desenvolvimento das classes baixas.”
Cátia Severino, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, defende que fazer-se o ensino nos crioulos “é uma decisão política de cada um dos países. Acho perfeitamente legítimo”.
Mas chama também a atenção para as dificuldades do processo, que envolve “um grande investimento”. “Primeiro é preciso criar e estruturar uma norma da língua e construir todos os materiais de passagem de conhecimento. Em Portugal, com toda a estabilidade que temos em termos de estudo da língua, foi uma enorme confusão só para fazer um simples acordo ortográfico…”
A discussão começa no facto de o crioulo não ser considerado língua por ter uma base de transmissão oral, sem estrutura fixa, ou seja, escrita. Esta distinção foi no passado uma das estratégias de “valorizar as línguas europeias”, adianta Cátia Severino.
Os crioulos surgiram num contexto de escravatura, com várias línguas em contacto com uma língua de base. Mas em países como Cabo Verde, tomaram totalmente conta da comunicação. Ali, já há anos que se fala em elevar o estatuto do crioulo a língua, tornando o cabo-verdiano língua oficial, a par do português.
Mas sem o português, salienta Luis Antero Reto, “não existem países como Angola, Moçambique, Guiné ou Cabo Verde. Sem a língua, os países desmembram-se em grupos e tribos.” E esta, adianta, é a razão pela qual “todos os movimentos de libertação inscreveram o português como língua oficial na Constituição. Já o Amílcar Cabral [fundador do PAIGC, partido da independência da Guiné e Cabo Verde] dizia que ‘a língua portuguesa é o melhor que os tugas nos deixaram’.”
“O idioma português não é a língua dos moçambicanos. Mas, em contrapartida, ela é a língua da moçambicanidade”, escreveu uma vez Mia Couto. “Há 30 anos, a Frente de Libertação de Moçambique, ainda na guerrilha anticolonial, viu no idioma lusitano uma arma para a unificação do país e a construção da Nação. Aquele instrumento que servira a dominação colonial se convertia, nas mãos dos nacionalistas, no seu contrário – um troféu de guerra, um pilar de afirmação.” Isso, em contrapartida, “coloca em risco as mais de 30 línguas indígenas dos diferentes grupos étnicos” – nenhuma falada em todo o território.
O império da língua
Cátia Severino faz exames de português a quem pretende obter a nacionalidade. Refere que a língua tem sido sempre usada como forma de veicular a identidade. E que é “a primeira arma a ser usada numa posição de tomada territorial. A delimitação do território faz-se através da língua”, vinca.
Dá o exemplo de Timor-Leste: quando foi a independência, em Maio de 2002, discutiu-se que língua adoptar. “A geração mais nova, formada na ocupação indonésia, falava bahasa. Mas se fosse esta a língua oficial corria-se o risco de, dali a 30 ou 40 anos, haver nova ocupação sob o argumento ‘a mesma língua, o mesmo povo’. O mesmo com o inglês na relação com a Austrália. O português ali funcionou como ilha. Foi uma estratégia política nesse sentido. Usou-se a língua como demarcador territorial para garantir que em gerações futuras a ocupação não volte a ocorrer”. Essa foi a mesma razão pela qual o Brasil viu demarcadas as suas fronteiras mais cedo do que os outros países da América do Sul, que falavam todos o castelhano: “A língua acaba por não se desenraizar da questão cultural porque acaba por ser um elemento identitário de um grupo”.
Será a língua o principal motor da nossa identidade? Inocência Mata refere que esse é muitas vezes erradamente o pressuposto. A académica são-tomense, professora da Universidade de Macau e da Universidade de Lisboa, está entre cursos e conferências no Brasil, não podendo responder directamente às perguntas enviadas. Mas remete para um artigo que escreveu em 2016 para a Revista de Estudos Literários. Conta como deixou em choque um embaixador da CPLP ao comunicar-lhe que no Campeonato Mundial de Futebol de 1998, na final entre a França e o Brasil, a sua torcida foi para a equipa francesa (composta por vários jogadores descendentes de africanos). Há a ideia de que “a comunhão linguística se sobrepõe a outras afinidades que convergem para a afirmação identitária, que, a julgar pela construção ideológica do ‘império da língua’, se realiza além da plenitude das outras pertenças.”
Para além disso, não se pode falar de uma “comunidade”, como se faz tantas vezes quando se fala de lusofonia, sobretudo em contexto colonial, logo de subalternidade. “Não me parece nem um ‘problema de universitários’ nem uma ‘observação beligerante’ considerar que, não obstante a sua eficácia estratégica, lusofonia é um termo e/ou um conceito que decorre de discursos intrinsecamente políticos, tendo subjacente, não raro, a ideia da continuidade e da amplidão imperial da língua portuguesa.”
O espaço lusófono, escreve, “é muitas vezes pensado como se a língua portuguesa tivesse sempre promovido relações interlinguísticas e interculturais”. A académica cita o escritor angolano Ondjaki: “Somos países africanos de língua portuguesa, mas não temos que ser de expressão portuguesa. Eu sou angolano, de expressão angolana (…) Não sei o que é lusofonia. Para ir a qualquer outro destes países eu preciso de visto. Por que um senegalês é francófono e um francês não é senegalófono? No meu caso, ou sou angolano ou sou cidadão do mundo”.
Língua global
O investimento na língua “é muito pouco e muito insuficiente, apesar de haver mais agora do que houve”, diz Luis Antero Reto. Só há meia dúzia de anos o português começou a ser encarado como “uma língua global”. “Antes estava comprometido com a diáspora, para que os portugueses não perdessem a ligação à pátria. Era uma língua de herança. Ora um país que pode ser a sexta ou sétima língua do mundo não pode olhar para a língua sem ser numa perspectiva de soft power global. Isto exige mudanças políticas enormes. A língua é uma questão essencial na diplomacia cultural e económica.”
Garantir que o português se torna uma “língua global” é mesmo um dos objectivos do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. É “claro” que há uma estratégia bem delineada para expandir a língua portuguesa pelo “maior número possível de países”, diz por email o presidente, Luís Faro Ramos. “Toda a rede externa deve trabalhar com este horizonte e finalidade – embaixadas, consulados, rede económica e comercial”. Como? Tentando que o português seja oferecido nos currículos escolares.
«São as regras do Acordo de 1990 que Fábio aprende na escola, como qualquer aluno em Portugal. O crioulo continua a ser a língua da família. Mas o português é a língua dos amigos. Também é em português que brinca com Ariana. É em português que pensa nos trabalhos da escola, ou em qualquer coisa relacionada com os seus estudos. Mas se estiver ocupado com as suas coisas mais privadas, “com os sentimentos”, então a sua cabeça ficará cheia de palavras crioulas.» |
As prioridades do Camões focam-se nos países onde há “comunidades portuguesas significativas”, como os Estados latino-americanos, ou aqueles que têm “afinidades específicas com o universo da CPLP, por serem observadores associados e/ou pela vizinhança geográfica ou cultural”, como é o caso do Senegal, Namíbia ou Uruguai. Ou ainda nos membros da União Europeia e em “todos os outros países a que nos ligam laços históricos ou que estão sendo cultivados contemporaneamente”, incluindo Índia, China, Malásia ou República da Coreia.
A rede de ensino de português no estrangeiro é vasta: “Ao nível da educação pré-escolar, ensinos básico e secundário estamos em 17 países, com cerca de 300 professores (a que acresce apoio direto a cerca de mais 600), abrangendo 68.758 alunos; ao nível do ensino superior e organizações internacionais, cooperamos com 402 instituições de 75 países, com 806 leitores, docentes e investigadores, alcançando 100.925 estudantes.”
Os donos da língua
A 5 de Maio celebrou-se o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Vários especialistas juntaram-se na Universitat Autònoma de Barcelona para o Encontro de Professores de Língua Portuguesa, suas Literaturas e Culturas (ELPLE) para constatar que apesar do seu peso demográfico, a língua portuguesa ainda é tratada como um idioma periférico, noticiou na altura o jornal brasileiro Folha de S. Paulo. Uma das causa para isso, apontaram, é o facto de a separação entre “português europeu” e “português brasileiro”, como se se tratasse de diferentes línguas. Houve quem responsabilizasse o Instituto Camões por promover o ensino do “português europeu”, resistindo à contratação de falantes do português do Brasil, e com isso ajudar a esta separação, como foi o caso de Tatiana Matzenbacher, da Universidade de Sorbonne Paris 3. A académica defende que é mesmo necessário promover aulas de “português geral”.
Luís Faro Ramos afirma que “essas críticas são infundadas. O que acontece é que muitos dos que nos procuram para o ensino da língua portuguesa como língua estrangeira – autoridades educativas, universidades, outros parceiros – pedem-nos expressamente professores que ensinem de acordo com a norma europeia. E nós tentamos sempre corresponder de forma adequada a essa procura.” E adianta: “Os professores portugueses, são naturalmente formados segundo a norma europeia. Aliás, caso o universo de docentes seja seleccionado por concurso público, o que acontece com os leitores e os professores do ensino básico e secundário, estes têm de cumprir os requisitos determinados pela legislação portuguesa.”
Em 2010, o escritor Germano Almeida acusava os portugueses de se acharem “donos da língua”. “E isto é muito mau. Os portugueses precisam entender que a língua portuguesa é tanto deles como nossa. A língua foi deles, agora dividimos a língua. Temos que aceitar essa realidade. Aliás, afirmo orgulhosamente que a língua é tanto dos portugueses como minha língua, e não quero desfazer-me dela.”
Na verdade, o português “não é uma língua, são várias”, no sentido em que tem muitas variantes nas suas diferentes geografias, diz o jornalista Nuno Pacheco, que tem escrito largas dezenas de artigos no Público sobre o Acordo Ortográfico (já lá iremos). “A evolução que teve nos diferentes territórios deveria ter sido aceite, em vez de contrariada”, afirma.
Dá como exemplo a história do brasílico: no século XVIII, falava-se no Brasil uma mistura da língua dos indígenas, dos missionários, dos escravos e dos colonos, “uma espécie de crioulo local que se chamava língua brasílica ou brasílico. Essa língua já era adoptada pelos missionários. O Marquês de Pombal, com absoluta violência, reprimiu a existência do brasílico. As pessoas eram punidas se o falassem e começaram a aprender o português tal qual ele existia aqui. Deve-se ao Marquês de Pombal o Brasil falar o português como fala agora. Mas como não adoptou o brasílico, o Brasil criou cada vez mais termos próprios. Tem um léxico riquíssimo, extraordinário. Se formos comparar o português de Portugal com o português do Brasil há milhões de diferenças, quer nas próprias palavras, quer nas formas de escrita.”
Essa tentativa de unificar a língua continua a manifestar-se ainda hoje – foi esse o objectivo do Acordo Ortográfico de 1990. “A única língua que teve a paranóia de tentar uma união foi a portuguesa, mais nenhuma. Por causa do medo que a língua se pulverize, do medo que os brasileiros passassem a dizer: ‘Não falamos português, falamos brasileiro’.”
Alguns académicos vaticinam que isso venha a acontecer de qualquer forma, e dentro de duas ou três gerações as variantes portuguesa e brasileira podem vir a ser entendidas como duas línguas distintas.
“Uma receita de bolo não é um bolo”
Para o linguista Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília, isso de falar numa só língua (mesmo tendo em conta apenas a variante brasileira) já nem sequer faz sentido.
Bagno tem defendido em diversos artigos e publicações que não há uma língua comum a todos os 160 milhões de brasileiros, não apenas pela extensão territorial do Brasil, mas sobretudo pelas suas disparidades sociais (um dos país com pior distribuição de riqueza). Há, sim, “um abismo linguístico entre os falantes das variedades não-padrão do português brasileiro — que são a maioria de nossa população — e os falantes da (suposta) variedade culta, em geral mal definida, que é a língua ensinada na escola.”
Está a referir-se ao Brasil, mas o que diz pode ser aplicado a outras geografias. Bagno aponta para um “preconceito linguístico” – tem um livro com esse título – que resulta numa comunidade de “sem-língua”, à imagem dos “sem-terra”. A maioria fala “uma variedade de português não-padrão, com sua gramática particular, que no entanto não é reconhecida como válida, que é desprestigiada, ridicularizada, alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do português-padrão ou mesmo daqueles que, não falando o português-padrão, o tomam como referência ideal — por isso podemos chamá-los de sem-língua.”
Este preconceito decorre da “confusão” que foi sendo criada entre língua e gramática normativa. “Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo… Também a gramática não é a língua.”
Há outros preconceitos. Falamos de português do Brasil mas dizemos português de África. Porquê? Para Cátia Severino, “pormos tudo no mesmo saco é uma visão redutora. Esse é o problema da forma como a língua portuguesa é abordada no mundo, e na minha perspectiva é bastante preconceituosa para os países africanos que identificamos como países de língua oficial portuguesa.” O português falado em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe “tem características na sua variação que o distingue, tem influência das línguas locais e sofre a sua transformação, que é perfeitamente legítima e natural.” Por isso temos de falar não num português de África, mas no português de cada um daqueles países.
Ferramenta de negócios
A criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, teve como objectivos “a concertação político-diplomática entre seus estados membros, nomeadamente para o reforço da sua presença no cenário internacional”, para além da cooperação em várias áreas e da “promoção e difusão da língua portuguesa.”
Mas se perguntarmos a Nuno Pacheco se a língua é uma ferramenta diplomática, o jornalista não poderia ser mais crítico: “Diplomacia com quem? Nas Nações Unidas, o português continua a não ser uma língua de trabalho. Dizem ‘nós estamos a caminho’, mas mais depressa se escolheu um português como secretário-geral. Isso deve querer dizer qualquer coisa. E não é por a língua ter várias variantes ou estar descoordenada, é porque a língua portuguesa não tem peso suficiente para estar nas Nações Unidas.”
Em vários dos países de língua oficial portuguesa, o português é apenas “língua de trabalho”, salienta. “Às vezes diz-se ‘é uma língua de negócios’. Mas negócios com quem? Com o Brasil? Mesmo em Portugal os negócios fazem-se em inglês.”
A ênfase dada à expansão da língua poderá estar mais longe da necessidade de divulgação da cultura portuguesa, do que do peso económico da CPLP. Segundo dados recolhidos em 2015 pelo Banco Mundial, 3,59% da riqueza mundial foi produzida em países de língua portuguesa. “Brasil, Angola, Moçambique e Timor-Leste detêm 91,5% da riqueza total produzida nos países de língua portuguesa”, aponta o Atlas.
Neste momento há 37 universidades na China a ensinar português, porque a CPLP tem países com potencial económico muito forte, afirma Luis Antero Reto. “A língua tem um número de falantes interessante? Então interessa para comercializar e fazer investimento estrangeiro.”
Em 2016, as nove economias da CPLP valiam quase três biliões de dólares (2, 7 biliões de euros) – se fosse um país, seria a sexta maior economia do mundo. Mas recessões e crises políticas em vários dos países que a compõem suscitam preocupações.
Desacordo ortográfico
Dentro da CPLP, cabe ao Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) desenvolver as estratégias de promoção e difusão do português. O IILP tem também como objectivo garantir a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. De acordo com Luís Faro Ramos, do Instituto Camões “os objectivos têm vindo a ser atingidos por todos os países, consoante as capacidades técnicas locais, e com grande espírito de entreajuda para a sua plena aplicação: a língua portuguesa dispõe hoje de um único documento legal, com normas de escrita que respeitam as variantes escritas representativas das diferentes formas gráficas nos vários países ou até dentro de um mesmo país.”
Mas ainda hoje, este não é de todo um tema consensual.
“A ideia peregrina de criar um português comum a todos – que não existe, nem nunca existiu – fez com que haja uma descolagem do português”, acusa o jornalista Nuno Pacheco. “O Acordo Ortográfico [de 1990] procurou o impossível. É uma ideia utópica. Finge que há uma uniformidade ortográfica que na verdade não há”.
Ao Acordo Ortográfico está subjacente a ideia de expansão: “A ideia é: com a simplificação, expande-se a língua… É uma espécie de megalomania neo-imperialista: já que não podemos ter império físico, temos um império na escrita. Para a língua portuguesa ser um grande império tem de ser aquilo que é: diferente e não una; una no seu traço global, mas muito diferente nas suas variantes, porque elas correspondem a modos de ser diferentes e a modos de falar diferentes dos vários países.Toda a gente fala da importância da diferença, e aqui, em lugar de se valorizar a diferença, valoriza-se o que é igual e tenta-se iludir a diferença como se ela não existisse.”
Em Portugal, apesar de o Acordo ter sido ratificado, a lei que continua em vigor é a do Acordo de 1945 que nunca foi revogada, aponta o jornalista. Brasil, Cabo Verde e São Tomé também ratificaram, mas não Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Timor-Leste. “Considerou-se que assim bastava”, critica. “Há quatro em oito que presumivelmente estão a aplicar, e desses quatro Cabo Verde praticamente não aplica, em STP não tem a mínima relevância (talvez seja usado por uma pequena minoria, mas nas escolas nem há capacidade para isso). O que cada vez se vê mais é uma escrita mista, que mistura o acordo antigo com o acordo novo. Uma salada.”
Para Maria do Carmo Vieira, uma das fundadoras da Associação Nacional de Professores de Português e também formadora de professores, este é mesmo um entrave ao ensino da língua. Acusa o Acordo de gerar “o caos e a insegurança ortográficos, na Escola e na sociedade, em geral, constituindo um atentado à qualidade do ensino e a uma aprendizagem inteligente”. Dá como exemplo a “impossibilidade de responder a dúvidas dos alunos sobre as aberrações que o AO 90 trouxe, a delirante elisão de consoantes, seja ‘c’ ou ‘p’ ou outras, ultrapassando o estipulado pelo próprio acordo, a insensatez das facultatividades, o desnorte na omissão de acentos provocando equívocos vários, a confusão no tira e põe de hífens”. Acredita ainda que o Acordo é “um erro crasso” que está “a prejudicar fortemente os alunos, portugueses e estrangeiros, que aprendem mal a sua língua materna ou língua segunda, respectivamente.”
São as regras do Acordo de 1990 que Fábio aprende na escola, como qualquer aluno em Portugal. Hoje, excepcionalmente, não teve treino de futebol. Continua a conversa antes de agarrar no comando da Playstation para um jogo da FIFA. O crioulo continua a ser a língua da família, diz. Mas o português é a língua dos amigos. Também é em português que brinca com Ariana. É em português que pensa nos trabalhos da escola, ou em qualquer coisa relacionada com os seus estudos. Mas se estiver ocupado com as suas coisas mais privadas, “com os sentimentos”, então a sua cabeça ficará cheia de palavras crioulas.
in programa Fronteiras XXI, sob o tema "Em português é que nos entendemos" transmitido na RTP 3, dia 6 de junho de 2018.