«Na balbúrdia do cotidiano, na “fala de dia de semana”, como diria o escritor João Guimarães Rosa, é o som da língua do povo que faz o português florescer, se transformar e impulsionar a criatividade e as mudanças.»
Se há um lugar onde a língua não tem amarras, recalques e entraves e pode exercer todo o seu potencial criativo é, com certeza, na boca do povo, onde o português circula sem “papas na língua”. É no burburinho do dia a dia, da vida de casa ao mercadinho do bairro, da feira ao encontro com os amigos, do trabalho às conversas na esquina que a língua explode em sentidos, porque é na interação social mais afetiva que nos deixamos revelar em nossa identidade linguística, sem preconceitos.
Não se trata aqui de tomar o português popular numa perspectiva da análise linguística, estabelecendo alguma oposição entre popular e culto ou entre língua padrão e não padrão. O que ressalto é o caráter social dos usos linguísticos, das práticas de linguagem que se desenvolvem em português nas interações cotidianas, nos diferentes espaços onde é língua de comunicação e de identidade social. Pode ser interesse de alguns gramáticos e linguistas, defensores do purismo, olhar para as expressões populares da língua com o objetivo de apontar o que entendem como deslizes ou “erros” de uso, sempre na perspectiva de discriminar o que não se considera o padrão. Mas na balbúrdia do cotidiano, na “fala de dia de semana”, como diria o escritor João Guimarães Rosa, é o som da língua do povo que faz o português florescer, se transformar e impulsionar a criatividade e as mudanças.
Em muitas cidades do nordeste brasileiro, por exemplo, nos bairros mais populares, ouvem-se os vendedores de rua entoando seus versos e revelando a sua inventividade, pois precisam atrair o interesse para os seus produtos, como o famoso «carro do ovo», figura comum em nosso cotidiano, que enuncia: «Olhe o ovo, do homem véio ao novo, é o preferido do povo!» E tantas outras figuras do nosso universo social, aqui e em todos os cantos onde a língua portuguesa vivifica. É essa língua que ouvi de um vaqueiro no interior da Bahia, que se dizia sem instrução e educação formal, e que ao se referir ao pôr do sol, disse: «Gosto de ficar parado nessa hora da tarde, olhando pro firmamento, até o supremo baixar os olhos.» Quanta poesia na fala desse homem simples. Ou a vendedora de pimentas secas no mercado popular de Maputo, que me interpelou por eu apenas comprar um pacote das pimentas: «Ohhhh mãe, leve mais um para me ajudar, vá!», e eu pensei que havia saltado de Maputo para Salvador, ouvindo na minha infância as vozes das mulheres pescadoras que usavam a mesma expressão. E ainda, a fala do imigrante nepalês da lojinha em Lisboa, trançando as palavras em português com as memórias de suas línguas de nascimento, segundo ele mais de duas, e se reinventando no mundo.
Na fala da gente comum é onde o português pulsa com maior força e vitalidade, pois que é vivo, livre e cheio da alma da sua gente.
Um apontamento elaborado e lido para o programa Páginas de Português, em 2 de abril e 28 de agosto de 2022.