Grande discussão em volta da frase «Felizmente que ele chegou».
Do ponto de vista didático, com o intuito de organizar o pensamento do discente do ensino básico e secundário, conduzindo-o à interiorização sintática da noção de frase e de oração, para que haja uma oração subordinada, tem de existir um nó oracional ou um predicador que justifique a oração subordinada substantiva: um verbo, um nome ou um adjetivo.
O que se pode exemplificar com a frases seguintes:
1.
a) Eu acho que ele já chegou. (verbo).
b) É verdade que ele já chegou. (nome).
c) É possível que ele já tenha chegado. (adjetivo).
Na frase «Felizmente que ele chegou» não me parece que se justifique sustentar, didaticamente, a tese de que alguns advérbios avaliativos, decorrentes de adjetivos que selecionam complemento, sejam predicadores e, portanto, selecionem também um complemento, no caso em apreço, uma oração subordinada substantiva completiva.
No capítulo 11.1.2.1 , p.315, de Gramática do Português, vol.I, da Fundação Calouste Gulbenkian, Eduardo Paiva Raposo escreve o seguinte: «Quando uma oração subordinada desempenha a função de complemento ou de sujeito da oração subordinante, chama-se oração completiva ou integrante». Em «Felizmente que ele chegou», felizmente não cumpre os requisitos de oração subordinante1.
Assim, parece-me que o que cumpre o papel de partícula expletiva (discurso oral), sendo a estrutura correta «Felizmente, ele chegou / Ele chegou felizmente», tratando-se, portanto, de uma única oração. A aceitar-se a oração completiva dependente do advérbio felizmente cai por terra o teste sintático aplicado à identificação das orações completivas:
2.
a) Acho isso. ( verbo (CD))
b) Isso é verdade. (nome (Suj.))
c) Isso é possível. (adjetivo (Suj.))
d) * Felizmente isso / Isso felizmente ( advérbio (?))
Assim, na frase «Felizmente (que) ele chegou», felizmente é um modificador.
Contudo, no volume III da mesma gramática, cap. 33.3.1.1.1 – complementos de advérbios em -mente, o mesmo autor escreve: «Alguns advérbios avaliativos com valor modal (como certamente, obviamente, e seguramente e alguns que exprimem atitudes ou juízos do falante sobre a situação descrita pela frase (como felizmente) podem ocorrer em dois quadros sintáticos distintos». Num deles, esses advérbios ocorrem em posição periférica da oração sobre a qual incidem semanticamente, posição essa que pode ser inicial, interna ou final:
3.
a) Obviamente, foi a Clara que partiu a jarra.
b) O Pedro, felizmente, escapou à fúria do pai.
c) O Luís vai chegar de novo atrasado, certamente/ seguramente.
Em alternativa, estes advérbios podem ocorrer como predicadores de orações impessoais (cf. Cap.28.2.2.1) subordinantes (cf. Cap. 11.1.2.1), tomando como complemento orações finitas iniciadas pela conjunção-complementador que, equivalentes às orações modificadas no paradigma 3.
4.
a) Obviamente [que foi a Clara que partiu a jarra.]
b) Felizmente [que o Pedro escapou à fúria do pai.]
c) Certamente / seguramente [que o Luís vai chegar de novo atrasado.]
No entanto, constituem uma minoria os advérbios avaliativos que aceitam o esquema sintático de 4., havendo possivelmente variação entre os falantes (cf. por exemplo a marginalidade ou impossibilidade de *«Infelizmente que o Real Madrid perdeu com o Barcelona» (compare-se com «O Real Madrid, infelizmente, perdeu com o Barcelona»), *«Provavelmente que o Luís chega atrasado» (compare-se com «Provavelmente o Luís chega atrasado»).
O que faz cair a tese de que os citados advérbios avaliativos mantêm a estrutura sintática do adjetivo do qual derivam e, por essa razão, selecionam um complemento.
1 Pode, pontualmente, ser um predicador (cf. p.1585, da gramática citada).
Nota:
As orações substantivas completivas ou integrantes são selecionadas por itens lexicais da frase superior/ oração subordinante. Consoante a categoria sintática a que pertence o item que seleciona a oração completiva, esta recebe a designação de completiva de verbo (a), de nome (b) ou adjetivo (c).
As orações completivas desempenham as funções sintáticas de sujeito de complemento direto e de complemento oblíquo:
– Função sintática de sujeito:
a) Surpreende-me que ele tenha concluído o relatório. ( Isso surpreende-me.)
b) É verdade que ele terminou o relatório. ( Isso é verdade.)
c) É possível que ele tenha feito o relatório. ( Isso é possível.)
– Função de complemento direto, dependentes de verbos:
e) Lamento que ele não tenha feito o relatório. ( Lamento isso.)
f) Penso que a Ana já terá terminado o relatório. ( Penso isso.)
– Função de complemento oblíquo, dependente de verbo (g), nome (h) e adjetivo (i):
g) Ele responsabilizou-se por terminar o relatório. ( Ele responsabilizou-se por isso.)
h) Agrada-me a proposta de que ele venha trabalhar connosco. ( Agrada-me a proposta disso.)
i) A Ana sente-se orgulhosa por ter conseguido terminar o relatório. ( A Ana sente-se orgulhosa por isso.)
Fonte: DUARTE, Inês, Língua Portuguesa, Instrumentos de análise, Universidade Aberta, p.157.
Ler: "Três perspetivas em diálogo", "A classificação de que em 'felizmente que ele chegou' I" e "A classificação de que em 'felizmente que ele chegou' II".