«Lembro-me de o meu pai e o seu compadre Kamujinha, assim chamado em quimbundo por ter a cabeça branca como algodão, saltarem dos camiões numa picada angolana, correrem um para o outro, abraçarem-se e, à vez, baterem valentemente nas costas do outro.»
Um dia, em homenagem ao 25 de Abril, publiquei um livrinho chamado Lembro-me Que. Agradeço que me poupem à discussão «quem se lembra não é que, é de que...». Trago Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo) como anjos protetores: «Quando o objeto indireto vem expresso por oração desenvolvida, a preposição de pode faltar.» E citam Rubem Braga: «Lembro-me que certa vez juntei uma porção de artigos médicos sobre o assunto.» Criticarem-me ainda vá, mas beliscarem-me o Braga, aí, fico escamadiço! Adiante...
O meu livro era um plágio descarado, confessado logo no título e explicado no prefácio. O francês Georges Perec publicara [em 1978] Je Me Souviens, uma boa maneira de desfiar o passado, bocadinhos do seu quotidiano, frases curtas, cada uma precedida pela litania «lembro-me que...», o que dava patine de pérola a cada memória, aparentemente banal. «Lembro-me que Burt Lancaster era acrobata», escreveu ele, e eu também me lembrava, ou pelo menos desconfiava, pelos saltos que lhe tinha visto em O Pirata Vermelho entre os mastros e o tombadilho, no meu bairro, no Cinema Colonial. A ideia de Perec era: nenhuma memória é insignificante.
Frases que talvez não valham nas grossas biografias «dos chefes de Estado e dos alpinistas», dizia Perec, mas que por vezes regressam, anos mais tarde, intactas, minúsculas, luminosas e epidémicas. Eu permiti-me o plágio (e a confissão dele), porque também Perec confessou ter copiado o escritor norte-americano Joe Brainard, que escrevera três I Remember, centenas de «eu lembro-me que...». Por exemplo, a frase de Brainard «I remember Christine Keeler e O Caso Profumo», só isso, essa frase, já nos levou, a mim e a um embaixador, amigos e nascidos no mesmo ano, a passar um almoço nostálgico.
Do primeiro I Remember, Paul Auster disse ser «uma obra-prima», e o Je me Souviens é um clássico que já entrou na coleção Pléiade. Sobre o meu Lembro-me Que tenho de ser breve. Embora com duas vantagens que aprecio, sendo a primeira ainda eu ainda cá estar (Perec morreu aos 45 anos e Brainard, aos 52). A segunda é por não ser de deitar fora o «lembro-me que» número 93 – dos 327 acontecidos entre o dia 1 de janeiro de 1974 e o 25 de Abril que depeniquei e publiquei. É um relembrar a prudência contra infelizes regressos.
No dia 31 de janeiro, António José da Glória, dono de papelaria na Alameda Afonso Henriques, não levantou os olhos quando servia uma cliente. E é do não levantar os olhos que me lembro (na verdade, eu estava em Paris, mas compulsei a imprevidência num exemplar de jornal). Nos dias anteriores tinha havido tourada pelas escadarias do Instituto Superior Técnico. O sr. Glória não reparou num outro cliente, desconhecido e à paisana, e comentou: «Ontem lá houve mais bordoada entre estudantes e a polícia.» O desconhecido era um guarda da PSP desfardado que, segundo o Diário de Lisboa, de 1-2-1974, «logo lhe deu voz de prisão». E o sr. Glória foi a tribunal acusado de «propagação de boatos». No «lembro-me que» seguinte, o número 94, o jornal Comarca de Arganil, em fins de fevereiro, ainda exigia vingança: «Que aconteceu ao boateiro? Ficava bem uma lição a valer.»
Historiar minudências cansa e Georges Perec dedicou-se também a romances. Para o que aqui me traz, lembro o seu Disparition, um lipograma. Para o leitor que há pouco me ia criticar o «lembro-me que» (deve ser o mesmo que há dias, na caixa de comentários, exigia ao “Director” que me corresse do Público e que eu me fosse albergar num daqueles covis que aceitam o Acordo Ortográfico), para esse amável leitor, aproveito dar todas as explicações. Já citei o professor Lindley Cintra sobre o «de que» e agora também digo que escrevo sob o Acordo, sim, mas só porque sim, se me ameaçarem tirar o pão para a boca, submeto-me (abjeta ou abjectamente, tanto me faz) logo; só não aceito é não amar a língua portuguesa. Leio o Rogério Casanova e não me recordo se é acordista ou não, sei é que é tão, tão bom.
Última explicação: lipograma é um texto feito de propósito sem uma ou mais letras do alfabeto, exercício fino. Se for sem uma vogal é um bico de obra. Georges Perec escreveu Disparition sem usar a letra “e”. Para o título ainda eu conseguia O Sumiço, respeitando a restrição, mas um tradutor brasileiro levou a cabo a aventura de 300 páginas sem um único “e”. Resumindo, há o Je me Souviens, exercício de pequenas memórias, sempre relançadas pela mesma ladainha, e há uma ausência evocada em Disparition, que bem pode lembrar outro sumiço. Então, sem ousar fazer um lipograma de que eu não seria capaz, junto os dois títulos e chego a esta crónica, nostálgica de gestos desaparecidos e hoje quase impensáveis de serem praticados.
Lembro-me de o meu pai e o seu compadre Kamujinha, assim chamado em quimbundo por ter a cabeça branca como algodão, saltarem dos camiões numa picada angolana, correrem um para o outro, abraçarem-se e, à vez, baterem valentemente nas costas do outro. Lembro-me do abraço que éramos todos e as mãos de José Afonso enfiadas nos bolsos, no seu último concerto no Coliseu. Lembro-me dos concursos em que mais gente entrava num Fiat 600. Lembro-me, num dia de chuva, ela ler um romance, o meu indicador desenhar um ponto de interrogação no braço dela – e ela disse que sim.
Lembro-me da proibição de um anúncio de bebé despido, ordenada por um qualquer governante, e apetecer-me escrever uma crónica, que publiquei na Visão, sobre os meus repenicados sons na barriga da minha filha e dos gorjeios dela. Lembro-me da menina bacongo ardendo de paludismo, a mais de mil quilómetros da sua aldeia onde a mina explodira, no hospital de campanha em Terras do Fim do Mundo, o guerrilheiro inclinar-se e afagar com carinho a saia dela para que o coto não fosse exposto à foto que eu fazia. Lembro-me de portas abrirem-se, gente a saltar-me ao pescoço e eu gostar, mesmo do primo do dono da casa que eu nunca vira.
Lembro-me de o saxofonista, no clube de jazz Smalls, Greenwich Village, estar mais próximo de mim que a distância social nunca antes ouvida por mim ou ele. Lembro-me que uns tais de hugs me foram oferecidos em Trafalgar Square e eu não os aceitar, não era por nada, mas por achar que tinham de ser merecidos. Lembro-me que me abracei a um polícia e, ambos aos saltos, saudando um crime: o Vata marcara com a mão e íamos à final da Champions. Lembro...
Cf. Línguas & Dialetos + A importância do jazz na luta por direitos civis nos EUA