A mitologia greco-romana revela-se constantemente no nosso dia a dia, mais do que muitas vezes imaginamos, através de várias palavras de uso comum. Alguns exemplos:
PÂNICO – Na mitologia grega, Pã – em grego Πάν [Pán] – era o deus dos bosques, das montanhas e dos campos, identificado pelos romanos como Fauno. Tinha um aspeto assustador, com chifres e patas de bode – e o seu constante apetite sexual fazia-o perseguir e assediar tanto ninfas como jovens rapazes. Toda a gente fugia, apavorada, atribuindo os vários ruídos da noite a Pã. Daqui nasceu a expressão «medo pânico» ou «terror pânico», hoje raramente usada, e, mais tarde, o substantivo pânico.
Camões, em Os Lusíadas (canto III, est. 67), quando se refere aos combates de Afonso Henriques contra os Mouros, afirma que estes fogem «dum pânico terror todo assombrado».
FAUNA – Era a mulher e irmã de Fauno, o deus romano dos rebanhos e dos campos, que se identificava com o deus grego Pã.
Os Faunos, descendentes de Fauno e de Fauna, eram deuses rústicos representados como humanos da cintura para cima e como bodes da cintura para baixo, mas dotados de chifres. Correspondem, na mitologia grega, aos Sátiros.
HERMÉTICO – Hermes, em grego Ἑρμής [ Hermês], o mensageiro dos deuses, conhecido como Mercúrio pelos romanos, não permitia que ninguém violasse as mensagens que transportava. Daqui, terá nascido a expressão «hermeticamente fechado».
Também era costume, entre os alquimistas, para tornar um frasco inviolável, colocar-se no seu gargalo um selo com o símbolo de Hermes: o frasco, então, mantinha-se «hermeticamente fechado».
MENTOR – Em grego Μέντωρ [Méntôr], aparece na Odisseia de Homero como o fiel amigo e conselheiro do herói grego Odisseu, conhecido entre os romanos por Ulisses. Mentor foi o precetor de Telémaco, o único filho de Ulisses e de Penélope, durante a ausência do herói na guerra de Troia. Hoje, esta palavra tornou-se um substantivo comum com o significado de pessoa experiente que aconselha, ajuda e inspira outra.
CEREAL – Deriva de Ceres, a deusa romana da agricultura e das colheitas, equivalente a Deméter (Δημήτηρ) na mitologia grega.
ÉGIDE – esta palavra, que significa «proteção, apoio» («sob a égide de»), tem origem na palavra grega que significa «pele de cabra» – a cabra Amalteia cujo leite amamentou Zeus em criança. «Mais tarde, quando Zeus lutou contra os Titãs, fez para si uma armadura com a pele desta cabra. Esta armadura é a égide.» (in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, tradução de Victor Jabouille ).
Na Grande Final da 2.ª edição do Campeonato Nacional da Língua Portuguesa, no dia 6 de maio de 2006, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa e com transmissão em direto na SIC, uma das questões abordava a egofagia – o hábito de comer carne de cabra, significando o elemento de origem grega ego (do grego αἴξ, αἰγός [aíks, aigós]) «cabra».
QUIMERA – Em grego Χίμαιρα [Khímaira], era um monstro lendário, geralmente representado com um corpo híbrido entre leão e cabra com cauda de dragão. Deitava chamas pela boca e foi morto por Belerofonte, montado no cavalo alado Pégaso. No sentido figurado, tem o significado de «fantasia, ilusão, utopia».
MORFINA – Este fármaco, utilizado especialmente como poderoso analgésico, deriva de Morfeu (em grego Μορφεύς), deus associado ao sono.
«Como a maior parte das divindades do sono e dos sonhos, Morfeu é alado. Tem grandes asas rápidas, que batem sem fazer barulho, e o levam num ápice aos confins da Terra» (in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, tradução de Victor Jabouille).
MERCÚRIO – Metal líquido e de cor prateada, de grande mobilidade, deve o seu nome a Mercúrio, o veloz mensageiro dos deuses, especialmente de Júpiter, que lhe pôs asas na cabeça e nos calcanhares, para poder executar as suas ordens com maior celeridade.
HERCÚLEO – Adjetivo utilizado muitas vezes na expressão «esforço hercúleo», ou seja, algo que exige um esforço sobre-humano, digno de Hércules e dos seus doze trabalhos.
EÓLICO – relativo ao vento («energia eólica») – de Éolo* ou Eolo, o deus guardião dos ventos.
* Os puristas da língua continuam a defender a ortografia Éolo, mas, como muito bem se interroga um consulente do Ciberdúvidas, «quem, entre o público em geral, diz Éolo e não Eolo?»
VULCÃO – Do nome de Vulcano, o deus romano do fogo, equivalente a Hefesto na mitologia grega.
ECO – Era uma formosa ninfa, que fora condenada a não mais usar a língua, a não ser para repetir o que lhe diziam. Eco, em grego Ἠχώ, encontrou, um dia, nos bosques, o belo e jovem Narciso, insensível ao amor e que nunca olhava para as donzelas. Como estava perdido no caminho, Narciso terá gritado: «Está alguém aqui?», tendo ouvido uma voz repetir as mesmas palavras: «Está alguém aqui, aqui, aqui…» Era a voz de Eco, que se encontrava oculta pelas árvores e, como não conseguia vê-la, o jovem exclamou: «Vem!» A ninfa «deu um passo em frente, surgindo de braços abertos. Quando a viu, porém, Narciso voltou-lhe as costas, zangado e aborrecido» – e Eco foi esconder-se, para todo o sempre numa gruta solitária, «roída pelo facto de lhe restar apenas a possibilidade de repetir aquilo que os outros dizem» (in A Mitologia, de Edith Hamilton, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991).
NARCISISMO – Do nome do belo jovem Narciso (em grego Νάρκισσος), que desprezava o amor. «Narciso foi objecto da paixão de grande número de raparigas e de ninfas, mas ficava insensível. A ninfa Eco apaixonou-se por ele, mas não conseguiu mais do que as outras. As jovens desprezadas por Narciso pediram vingança aos céus: num dia de grande calor, Narciso debruçou-se sobre uma fonte e nela viu o seu rosto tão belo que ficou apaixonado. A partir de então, debruça-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer. No lugar onde morreu, brotou uma flor à qual foi dado o seu nome, o narciso. (in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, tradução de Victor Jabouille).
MÚSICA, MUSEU – palavras formadas a partir de Musa, em grego Μοῦσα, divindades que inspiravam a criação artística ou científica. As Musas eram nove irmãs e o seu templo, o Mouseion, deu origem à palavra museu, local de cultivo e preservação das artes e ciências.
VENERAR, VENERÁVEL, VENÉREO – Estes vocábulos têm como base o nome da deusa latina do amor e da beleza, Vénus (em latim, Venus, Veneris), correspondente à deusa Afrodite ( Ἀφροδίτη) da mitologia grega, de onde derivou a palavra afrodisíaco.
HERMAFRODITA – ser que possui órgãos reprodutores dos dois sexos, como, por exemplo, o caracol. No hermafroditismo humano, recorre-se muitas vezes a uma cirurgia para se definir o sexo (do nome do deus grego Hermafrodito, filho de Hermes e de Afrodite).
ERÓTICO – Relacionado com Eros (em grego Ἔρως), o deus do amor carnal, na mitologia grega.
BACANAIS – Do latim Bacchanalia, eram, na Roma Antiga, os rituais religiosos em homenagem a Baco (ou Dioniso, em grego Διόνυσος), deus do vinho, da ebriedade e dos excessos, sobretudo sexuais.
EUROPA – Em grego Εὐρώπη, era uma princesa de grande formosura, que Zeus, metamorfoseado num touro branco, raptou e levou para Creta. Mais tarde, Zeus terá atravessado com ela os mares e chegado a um local ao qual foi dado o nome de Europa.
ATLÂNTICO – Deriva de Atlas (em grego Ἄτλας), que na mitologia grega era um gigante Titã, que participara na luta contra os deuses, tendo sido punido por Zeus a sustentar o mundo sobre os ombros.
O nome de Atlas foi dado à cadeia montanhosa que se estende ao longo do norte de África, através de Marrocos, Argélia e Tunísia. Também se chama “atlas” a um livro de mapas geográficos.
TARTARUGA – O nome deste animal vem de Tártaro (em grego Τάρταρος), a região mais profunda dos Infernos na mitologia greco-romana. «Pouco a pouco, o Tártaro confundiu-se com os Infernos propriamente ditos», esse mundo subterrâneo «onde eram supliciados os grandes criminosos. Neste sentido, o Tártaro opõe-se aos Campos Elísios, morada dos Bem-Aventurados.» (in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, tradução de Victor Jabouille).
Os antigos acharam, pois, que este animal tinha um aspeto tão horrível, que parecia ter saído das profundezas dos Infernos. Por esta razão, chamaram-lhe “ταρταρούχος” [tartarúkhos], ou seja, vindo do Tártaro, a região mais terrível do mundo dos mortos, o reino de Hades, equivalente ao deus romano Plutão.
«Geralmente, Hades, cujo nome significa “o Invisível”, não era nomeado, pois temia-se que, invocando-o, se provocasse a sua cólera. Por isso, designava-se através de eufemismos, o mais corrente dos quais era Plutão, “o rico”**, alusão à riqueza inesgotável da terra», principalmente dos minerais. (in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, tradução de Victor Jabouille)
** Em grego, πλοῦτος [plútos], significa «riqueza», donde plutocracia, «o governo dos ricos».
Texto originalmente publicado pelo autor na sua página de Facebook em 19 de dezembro de 2018.