A linguagem serve para informar, ordenar, condenar, acusar, perdoar, amar… Na sua plasticidade, a linguagem coloca-se ao serviço das mais variadas intenções, das mais positivas às mais negativas.
Foi isto que vimos acontecer no triste episódio que teve lugar no passado dia 16 de fevereiro, no jogo entre o o Vitória de Guimarães e o Futebol Clube do Porto e, durante o qual o jogador franco-maliano Moussa Marega foi insultado por adeptos da equipa minhota.
Tudo porque o resultado favorável à equipa visitante fora resultado do golo marcado por um seu jogador negro. Alguns adeptos da claque vitoriana reagiram então da forma mais negativa, recorrendo a impropérios e urros racistas. É, infelizmente, o que se passa com muitas outras claques do futebol (e não só em Portugal), num clima de antidesportivismo mais primário. É ganhar ou partir tudo! Os valores humanos contam pouco neste contexto, que faz vir ao de cima o pior das pessoas.
O que provou a atitude da claque minhota? Que a linguagem é poderosa. É uma arma que magoa, que fere e que se crava na alma de quem é atacado. Marega mostrou-o sem equívocos. Porém, é esta mesma arma desapiedada que mostra a falta de escrúpulos e de civilidade de quem a usa, porque recorrer à linguagem discriminatória e ofensiva como forma de atingir alguém que se quer considerar inferior mais não é do que submeter-se aos instintos mais vis e animalescos do ser humano.
Das expressões preconceituosas ao discurso racista
O recurso à linguagem ofensiva em geral evidencia que há seres humanos que se julgam superiores, melhores, mais perfeitos, mais qualquer coisa que nem eles sabem o que é. Seres que escolhem inferiorizar, discriminar, menorizar, menosprezar com a linguagem. Uma opção que vai desde o estereótipo associado à cor até à violência física escondido sob a brutalidade da expressão.
Não podemos, todavia, esquecer que aqueles adeptos não são os inventores da linguagem do ódio. Eles apenas usam o que já se encontra à disposição. É a própria sociedade que guarda, mantém e perpetua as expressões que veiculam o preconceito. Termos como , «mercado negro», «dinheiro negro», «magia negra», «lista negra» ou «humor negro» denunciam um preconceito associado à cor da pele, cuja origem se perde no tempo. É evidente que poderão ser usados de forma mais ou menos inócua, mas o distanciamento relativamente ao conceito de «negro» está nos antípodas da simpatia gerada pelo termo «branco» e é por isso que aquele pode facilmente ser conotado com a discriminação.
Mais explícitas são expressões como «trabalho de preto», «vida de preto» ou «a coisa está preta». Ou, ainda, «da cor do pecado», «mas eu sou preto?» ou o comentário pseudojocoso «tanto aperto a mão a um branco como o pescoço a um preto». Aqui o racismo boia na superfície da significação. Mesmo que dirigidas a pessoas brancas, amarelas ou cor-de-rosa, a intolerância está lá e serve como ofensa e todos o sabemos quando estas expressões são convertidas em piadas boçais para avaliar qualquer situação ou quando são ditas de forma agressiva para verbalizar uma crítica ou uma acusação.
Nesta escala que vai do preconceito ao racismo, a injúria, a agressividade e a violência não deixam qualquer margem de dúvida em expressões como «parece que és preto», «preto de m****», «o c****** do preto» ou «volta para a tua terra, ó preto». São construções desta natureza que se ouvem nos campos de futebol quando o racismo é transformado em conveniente arma de arremesso. E a cereja no cimo do bolo é a animalização do jogador, convertido em inimigo. Os gritos «Macaco!», «Chimpanzé!» (animais despudoradamente associados aos africanos), acompanhados de urros imitativos dos sons dos símios e de saltos que mimetizam os seus movimentos típicos, constituem o último grau de uma mescla de racismo e ódio vomitado por homens das cavernas convencidos da sua afoiteza pós-moderna.
Todos sabemos que o recurso ao discurso de ódio tem lugar em demasiadas situações. Quantas vezes a linguagem é usada para atacar raça, cor, etnia, género, religião, orientação sexual, isolando e inferiorizando aqueles que são empurrados para estes grupos. Muitas vezes, só porque quem recorre à linguagem da discriminação e do ódio não tem outra forma de se mostrar grande, até porque nada fez para se engrandecer. Só porque quem a usa propaga a prática da família, do grupo de pertença e quer sentir-se integrado e mostrar que é “homem”. Só porque ainda há quem acredite numa ideia estapafúrdia de homem perfeito, diferente de quem se injuria e, provavelmente, parecido com o injuriador. Só porque há quem julgue que a banalização e a propagação de certas expressões não trazem mal ao mundo e até têm a sua piada.
A construção da linguagem foi um passo enorme na definição da nossa humanidade, mas usá-la como arma de arremesso, carregando-a de preconceitos e ódios, não deixa de atirar quem o faz para um espaço pré-histórico. Não é a cor da pele que faz de nós mais ou menos, mas a linguagem que usamos pode colocar-nos acima ou abaixo da linha da humanidade. A escolha é nossa!
Cf. O racismo + Quantos mais escravos vão continuar a levar o futebol às costas? + O golaço de Marega + Portugal é coiso? Ou Portugal não é coiso? + Liga portuguesa lança campanha contra o racismo nos estádio de futebol + Entre 2017 e 2019 houve 10 casos de racismo em eventos desportivos [em Portugal] + Não foi só Marega. Eis a lista de casos de racismo no futebol