Os linguistas, afinal, gostam ou não de literatura? A polémica continua a provocar reacções
Vasco Graça Moura
1. A senhora Dr.ª Inês Duarte ficou muito enxofrada por eu ter dito que os linguistas odeiam a literatura. Escusava de se abespinhar tanto com a minha provocação, porque, como entenderá quem for medianamente capaz de interpretar uma frase no contexto em que ela seja proferida, não me preocupa absolutamente nada o caso pessoal de cada linguista: pode gostar muitíssimo de literatura ou preferir-lhe os pastéis de nata, que eu não tenho nada com isso.
Já me preocupa, e muito, que haja linguistas, responsáveis por concepções e orientações consagradas nos programas de ensino do Português, que odeiam realmente a inclusão da literatura nesses programas nos termos em que eles deveriam comportá-la.
Pelo menos no departamento da senhora Dr.ª Inês Duarte, o actual e péssimo programa de Língua Portuguesa dos 10.º, 11.º e 12.º anos foi discutido com a equipa responsável pela sua elaboração e, em geral, com poucas reservas ainda agora é aplaudido. Considera-se mesmo que ele dá para "assegurar a necessária formação em Língua Portuguesa (!!!) e garante o contacto (?), indispensável, com textos literários de qualidade (?), com o triplo objectivo de fomentar no aluno hábitos da leitura, desenvolver o seu gosto pela cultura e familiarizá-lo com obras marcantes do património literário nacional" (provavelmente com aquelas que não inclui ou manda expeditivamente para o limbo...).
Não é pois difícil provar a minha asserção com o banimento, o exílio ou a posição menor e redutora a que nesses programas foram relegados autores como Gil Vicente, Camões, Cesário Verde e muitos outros, por sinal dos maiores e dos mais importantes, tudo em nome do "português padrão".
De resto, pode-se confirmar esse ódio com a catastrófica produção que é o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia, elaborado por um grupo de linguistas e pretensamente apresentado como "dicionário-padrão da língua": supressão de milhares de palavras; não consideração dos autores anteriores a Almeida Garrett; lapsos sem conta, quando não asneiras abomináveis nas abonações...
2. Eu não sabia, mas agora fiquei a saber, que uma das "ideólogas" ou, se se preferir, uma das eminências pardas da faiscante situação a que se chegou terá sido, precisamente, a senhora Dr.ª Inês Duarte. Não só ela diz ter discutido em público e em privado com a equipa que elaborou os programas de 1991, como, do alto da sua piramidal competência, pelos vistos continuou a fazê-lo com a equipa de autores dos programas em vigor desde o presente ano lectivo.
Tenho à minha frente o seu artigo de 1996, "Se a Língua Materna se Tem de Ensinar, que Professores Temos de Formar?". A sua crítica a um programa que já era mau alicerça-se naquilo a que ela chama "o papel da disciplina de Português no acesso, conhecimento e uso apropriado do Português padrão". Fechemos os olhos sobre aquela bizarria preposicional do "acesso (...) do Português padrão". A autora estranha que seja "dado um grande peso ao texto literário nos programas" e liberta esta primeira pérola: "É, no mínimo, optimismo exagerado esperar que adolescentes e jovens que não dominam o Português padrão possam ler fluente e competentemente textos literários contemporâneos e passados, e a eles respondam activa e criticamente".
Trata-se de demitir a escola de uma função e de objectivos que julgaríamos normais. Em vez de se entender que a escola deve habilitar para aquela leitura de textos literários, do que se seguiria a aquisição de uma maior competência no uso corrente da língua em qualquer área, propõe-se uma aberrante inversão dos termos do problema e o nivelamento pelo mais baixo.
Afinal, estamos perante uma indiferença, ainda de matriz saussuriana, a conteúdos e a valores culturais específicos, atrozmente combinada com um desajustado "parti pris" sociológico e um pseudo-altruísmo da não-exigência. Em termos de insucesso, Portugal vai pagar muito caro as veleidades do Português padrão: o que importa é "transportar para a aula tipos de textos que a escola não privilegiava mas cuja produção e compreensão a sociedade tem vindo a exigir". Começamos a compreender o que a autora quer banir, o que ela quer introduzir e o que vem agora nos soturnos programas de falhanço a que deu a sua concordância.
Mas em seguida vem a girândola espasmódica que é a chave de tudo e de que destaco algumas passagens: "(...) os próprios programas têm de ser repensados, quanto ao peso relativo que atribuem aos vários tipos de fala e texto a trabalhar. Vale a pena pensar no que se ganharia em distinguir curricularmente a disciplina de Português da de Literatura, como acontece em alguns países europeus. Ou seja, se o texto literário deve estar presente nas aulas de Português ao lado de outros tipos de textos, se a leitura de contos, novelas, romances, poemas fora da aula deve ser incentivada, é no mínimo duvidoso que, pelo menos até ao fim da escolaridade obrigatória, se deva considerar a análise literária e a história da literatura como conteúdo nuclear da aula de Português".
Para puxar a brasa à sua sardinha, ela teve de escrever "a análise literária e a história da literatura". O programa que refere, tal como o cita, fala, sim, em "literatura em língua portuguesa, clássicos universais, outros textos de reconhecido valor estético" e em "obras literárias de diferentes géneros"...
Finalmente, define o professor de Português como "um bom utilizador do Português padrão" e, para o arsenal da sua formação, requer um conjunto de ferramentas entre as quais se contam "vocabulários, prontuários, dicionários enciclopédicos, etimológicos, de regências, de sinónimos, gramáticas", mas se omite a referência a quaisquer obras literárias!!! Realmente, para quê, se o ensino do Português padrão as secundariza?
A senhora Dr.ª Inês Duarte não quer uma verdadeira formação de professores; quer, sim, uma "formatação" de professores, empanturrados de teorias que nem percebem nem sabem aplicar, capazes (?) de ler uma notícia de jornal ou um regulamento televisivo, mas incapazes de suscitar empatias e o prazer da fruição estético-literária nos alunos, sem o qual não há aprendizagem da língua digna desse nome. Nem podem suscitá-los porque, para a minha ilustre opositora, não têm de ser preparados para isso. Só para um Português a que ela chama "padrão" e que já é um lúgubre "padrão de inépcia"! Uma catedrática minha amiga dizia-me há dias ter encontrado um professor de Português que lhe falou em Oliveira Martins, "pensador do século XII" (doze)... É "disto" que se preparam fornadas padrão!
Entretanto, a senhora Dr.ª Inês Duarte, obcecada pelos países de ponta e pelos milhares de páginas que diz ter lido, não vê a realidade e não se dá conta de que a aprendizagem de português na escola se tem degradado criminosamente de dia para dia nos últimos anos, e mais ainda desde 1996. O que, só por si, é uma boa demonstração de que os programas são um escândalo, estão clamorosamente errados e têm de mudar, em muito que isso lhe pese a ela, por deles ter sido uma espécie de Egéria desastrada ou de guru macambúzio.
3. Recomendo à senhora Dr.ª Inês Duarte a leitura do relatório de leccionação de Linguística Aplicada "Para uma Pedagogia Integrada da Língua e da Literatura", de Fernanda Irene Fonseca (Porto, 1966) e da bibliografia aí citada; e também a leitura de O que É Ser Professor de Literatura, de Carlos Ceia (Lisboa, 2002). São duas obras facilmente acessíveis e muito mais estimulantes do que o seu datadíssimo, ultrapassadíssimo e equivocadíssimo artigo que acima utilizei. Pode e deve completar esse exercício com um fundamental "study case", "Gil Vicente na Escola de hoje", a pp. 183-196 das Revisões de Gil Vicente, de José Augusto Cardoso Bernardes (Coimbra, 2003). Num plano mais ligeiro, a entrevista de Luc Ferry à "Lire" de Março corrente viria a dar-lhe também algumas pistas. Um dia, talvez deixe de... odiar a literatura portuguesa nos programas escolares. Até lá, passe muito bem.
Réplica de Vasco Graça Moura, in "Actual"/"Expresso", de 13-03-2004