« (...) É exclusivamente portuguesa a palavra Natal; e o haver na África Oriental uma colónia inglesa com êste nome recorda que foram Portugueses os achadores daquela terra e os seus padrinhos. (...)»
Vem aí o Natal e naturalmente ocorre a um linguomaníaco chamar a atenção dos seus ouvintes para alguns factos de linguagem, ligados à grande festa cristã do nascimento de Jesus.
Ao natal chamam os Espanhóis Navidad e Noche Buena; os Franceses, Noël; os Ingleses, Christmas; os Alemães, Weihnachten. Da nossa língua aproxima-se neste ponto mais que nenhuma outra a italiana, que ao Natal dá o nome de Natale.
Natal é derivado do latim dies natalis, «dia de natal», com elipse ou supressão do substantivo dia e substantivação do adjectivo natal. Que natal é primitivamente adjectivo, vê-se bem nas expressões terra natal, aldeia natal, e semelhantes.
A palavra espanhola navidad é sinónima de natividade = «natividade», termo que nós reservamos para designar o nascimento da Virgem: Natividade de Nossa Senhora.
O francês Noël já foi nael no francês antigo e estava assim mais próximo da sua origem latina, que é também natalis, muito mais desfigurado que o natal português e o natale italiano.
Quanto ao Christmas inglês, é palavra composta do nome de Cristo e do substantivo mass que significa missa, de modo que o conjunto significa «missa de Cristo».
Finalmente o vocábulo alemão Weihnachten, literalmente «noites santas», referia-se na origem ao período de doze dias (ou noites) que vai de 25 de Dezembro a 5 de Janeiro – os doze dias consecutivos ao solstício de inverno, durante os quais os antigos Germanos pagãos celebravam também a festa dos mortos.
É portanto exclusivamente portuguesa a palavra Natal [1]; e o haver na África Oriental uma colónia inglesa com êste nome recorda que foram Portugueses os achadores daquela terra e os seus padrinhos. De Natal derivámos Natália, para baptizar com êste nome uma pequenina nascida no dia de Natal, assim como da palavra Páscoa tirámos o nome próprio masculino Pascoal.
Da linguagem do Natal fazem parte as palavras consuar, consuada, que de antes se escreviam com o na segunda sílaba, onde a reforma ortográfica de 1911 mandou pôr u. Esta alteração tem levado tempo a instalar-se e a vencer o costume anterior.
Assim como o antigo consoar com o o nada tinha com som, assim o moderno consuar com u nada tem que ver com suar «transpirar». Durante anos e anos não puderam os pobres etimologistas consuar descansados, sempre a cismarem na origem desta palavra. Caldas Aulete queria derivá-la do latim consolari, vendo assim em consuada a idéia de consôlo; Domingos Vieira entendia que consoar era corrupção de concear, isto é: cear em companhia. Os filólogos modernos, senhores de métodos mais científicos, acabaram com estas hesitações e fantasias. D. Carolina de Michaëlis lembrou, e Gonçalves Viana concordou, que o verbo consuar viesse de cum + sub + unare, exprimindo assim reforçadamente a idéia de «reünião», «companhia», «comunidade». Ainda hoje se usa em Trás-os-Montes a expressão de consum, que se tornou arcaica no resto do País, e significa «juntamente», «de companhia». Vamos de consum = Vamos juntos.
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Ora o Menino Jesus não aprendeu francês, nunca teve mademoiselle, o que o coloca em manifesta inferioridade sempre que o «chiquismo» se intromete com os nossos festejos tradicionais do Natal. E como êsses festejos são tradicionais, e como a grande tradição nacional do «chiquismo» é meter franciú na conversa, na escrita e nos costumes, aí temos o Presépio substituído pelo Pai Natal, que é o Père Noël dos Franceses.
Outra francesia chiquíssima é o réveillon, que em francês significava a princípio a ceia ou banquete que em geral acaba em baile e se seguia à missa que nós chamamos «do galo», porque o galo cantou quando Jesus nasceu. Modernamente, por analogia, a palavra réveillon aplicou-se em França para designar também a ceia do fim do ano, na madrugada de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro.
Bem feitas as contas, réveillon é apenas madrugada ou noitada, sem mais complicações nem chiquezas; e réveilloner significa uma coisa muito simples embora pouco saudável, que é «estar acordado às horas de dormir»: fazer noitada, passar a noite em claro por divertimento.
Referido à noitada de Natal, o réveillon pode traduzir-se por «ceia do galo» ou «baile do galo», à semelhança de «missa do galo». Se se aplica a palavra não ao Natal, mas à passagem de ano, pode traduzir-se por noitada das Janeiras, como propôs o Dr. Joaquim Alberto Pires de Lima; e assim como se diz «cantar as Janeiras», podia dizer-se cear ou dançar as Janeiras. Podia, mas não pode. E não pode, porque, já escrevi no meu Glossário de incertezas, forma-se uma espécie de janotismo lingüístico, de carácter umas vezes comercial, outras vezes mundano, graças ao qual a expressão estranha e intrusa, exactamente porque o é, se cobre de prestígios e adquire uma feitiçaria que o vocábulo nacional é incapaz de atingir.
Já vi uma vez um sujeito furioso porque alguém chamou átrio ao hall da sua casa; por idênticos motivos a palavra réveillon é absolutamente intraduzível em português, para todos aquêles que se deixaram traduzir a si próprios em francês.
Fala-se agora muito em nacionalizar o Natal, porque vivemos em época de nacionalismo entusiástico, o qual, talvez por ser só de bôca para fora, ainda não nos chegou à Língua. Por isso o Pai Natal, de seu verdadeiro nome Père Noël, tem umas filhas muito simpáticas, as quais, por homenagem ao papá, se chamam a si próprias Noëlistas e fazem muito gôsto nisso. Muito caritativas, as filhas do Père Noël, não têm caridade nenhuma com a sua língua, nem afinal com os portugueses pobres, pobres portugueses que não sabem franciú e entenderiam perfeitamente que as suas bemfeitorias se chamassem por exemplo Irmãzinhas do Natal, mas não percebem nada dessa história de Noé às listas.
Nesta falta de caridade com o povo as filhas do Père Noël não se parecem nada com a Igreja portuguesa, que deliberou alterar a letra do Padre Nosso, para que o povo entendesse e sentisse melhor a oração dominical.
Lisboa, Dezembro de 1941
[1 N. E. – Como Agostinho de Campos observava, o latim (dies) natalis deu origem ao português Natal e ao italiano Natale. Observe-se, porém que há mais cognatos nas línguas românicas, pois em catalão diz-se Nadal (cf. o dicionário do Institut d'Estudis Catalans), forma que é também a atribuída ao galego, pelo dicionário da Real Academia Galega (agradecem-se a Luciano Eduardo de Oliveira as observações que fez a propósito do catalão).]
Cf. Doze deliciosas palavras deste Natal + Els Caganers: a mais estranha tradição de Natal da Catalunha + O Natal de A a Z + Natal + Natal, como surgiu? Verdadeiro significado da data natalina
In Língua e má língua (Livraria Bertrand, 3.ª edição, 1945) de Agostinho de Campos. Manteve-se a grafia original, conforme o acordo de 1945.