« (...) A palavra de Deus é uma promessa e essa promessa é já o objeto da fé. (...) »[*]
A fé não é para os sensatos, porque “encarnação” ou “ressurreição” são, felizmente, ideias insensatas. Tocam-me no cristianismo algumas noções pascais, mais até do que as natalícias, mas nunca deixei de me sentir intrigado pelo Advento, tempo que, no calendário litúrgico, corresponde à preparação do Natal mas que também introduz uma humanização do divino. Intuía isso sem saber bem explicar, até que, no Advento deste ano, encontrei um texto de um autor protestante que muito admiro, Karl Barth, que diz tudo.
Esse texto, “Quatro estudos bíblicos sobre Lucas 1”, nasceu de uma alocução a estudantes de Teologia de Bona, em 1934, depois transcrita e publicada numa revista. O pastor e teólogo suíço estava suspenso de funções universitárias por causa da sua oposição veemente ao nacional-socialismo, mas não desistira de se fazer ouvir. Advento, assim se chama a versão em livro, é um comentário ao Evangelho de Lucas que assume um tom «áspero, insistente, seguro», diz a nota introdutória da edição francesa. «Áspero» quer aqui dizer coloquial e directo; «insistente» tem a ver com as reiterações, as ênfases, os sublinhados, os itálicos; e «seguro» significa que Barth não é apenas um intelectual mas um homem de fé.
As teses do texto que mais me perturbam são eminentemente humanas, sem deixarem de ser teológicas. Uma delas lembra que o anúncio feito a Maria diz que ela «dará à luz um filho». E um filho, escreve Barth, não é um anjo, nem um espírito, nem uma ideia, mas uma pessoa. A «encarnação» existe como equilíbrio enigmático entre o humano e o divino, mas também apresenta o humano enquanto lugar do divino. Não se trata de substituir uma natureza pela outra, mas de lhes conceder igual dignidade, engrandecendo assim a mais pequena, ou seja, a natureza humana.
Uma segunda tese, de carácter filológico, mas que vai além da filologia, indica que a frase «a Deus nada é impossível» significa «a Deus nenhuma palavra é impossível». É assim que Barth interpreta o acontecimento Advento: a palavra de Deus é uma promessa, e essa promessa é já o objecto da fé. Por isso escreve, na segunda das quatro lições: «Em termos bíblicos, não há omnipotência de Deus que não esteja relacionada com a Palavra de Deus. Devemos procurar Deus apenas no que Deus nos disse. A sua omnipotência está viva e activa na Palavra. A sua Palavra é que nos gera, nos governa, nos ampara.» A exclamação de Maria «faça-se em mim segundo a vossa palavra» mostra que a palavra é presença logo enquanto promessa, antes ainda do acto que a concretiza. E embora se trate da Palavra divina, maiúscula, vislumbramos aqui uma concepção forte de toda a palavra: a palavra é uma esperança que se manifesta logo que nela acreditamos.
Uma terceira tese, a mais tocante, diz respeito ao nome de João Baptista, o homem que veio anunciar Jesus. Na narrativa bíblica, João nasce na sequência de uma promessa feita a um homem idoso e a uma mulher estéril. Quando Isabel dá à luz, todos querem que a criança se chame Zacarias, como o pai; mas Isabel insiste que o menino tem de se chamar João, palavra que tem origem em «graça» ou «bênção». Zacarias concorda: «João é o seu nome.» Trata-se de um nome que não vem da tradição, da tribo, da família, mas de uma vocação, de um chamamento. Qualquer nome pode não passar de um signo arbitrário; mas no texto bíblico uma palavra é mais do que uma palavra. E não há promessa divina mais humana do que a promessa evangélica: «Dizei uma só palavra e serei salvo.»
Para a minha mãe
[*Na imagem, Anunciação (1936), de Jorge Barradas (Lisboa, 1894–idem, 1971), Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (Lisboa). Fonte: MatrizNet.]
Texto da autoria do poeta português Pedro Mexia e publicado em 14 de dezembro de 2019 no suplemento Revista do semanário Expresso. Respeitou-se a norma ortográfica de 1945 seguida pelo autor.