Em letra de forma e impressa, a palavra geringonça surgiu na “Comédia Eufrosina” (Coimbra 1542?), um vasto diálogo de Jorge Ferreira de Vasconcellos cuja versão impressa original, dedicada ao príncipe de Portugal (provavelmente D. João, filho de D. João III e pai de D. Sebastião), está na Biblioteca Nacional. Por mim, tomei contacto com a peça através da edição novamente impressa e emendada por Francisco Roiz Lobo, terceira edição fielmente copiada por Bento José de Sousa Farinha, professor régio de Filosofia e sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa. Academia onde esta edição (cujo original está na Biblioteca Nacional Austríaca, em Viena) foi impressa no ano de 1786 com a licença da Real Mesa Censória.
Esta introdução, que pode parecer demasiado extensa, transporta uma boa notícia: a Censura, há 462 anos, tal como há 230 anos, não viu problema na utilização da palavra (ao contrário do que por aí fazem alguns). Isto não a impediu de estar no Index de livros proibidos entre 1581 e 1666, quando sai a edição revista por Roiz Lobo.
Assinale-se, porém, que o atual primeiro-ministro português desde cedo introduziu a palavra no seu próprio vocabulário, guardando-a no vasto estômago onde coleciona diversas espécies engolidas, tendo mesmo oferecido a cada ministro a sua pequena geringonça, de forma a não se esquecerem onde estão, de que forma estão e o que podem e devem fazer. E quem sabe se, tendo um Presidente tão dado ao teatro, não terá Marcelo por acaso visto a “Comédia Eufrosina” em 1995, no Convento dos Inglesinhos, quando por obra da atriz e encenadora Silvina Pereira, ela foi à cena.
Mas voltemos à original e portuguesa geringonça. No livro citado, do referido Jorge Ferreira Vasconcellos, “Comédia Eufrosina”, afirma a dado passo o moço de recados Andrade quando fala com Chariophilo, moço de câmara e espécie de D. Juan português – duas das 17 personagens da peça: «Aquele é apagado, aqueloutro carecido de vista (para não dizer parvo); outro deslustroso e eu não sei qual é o melhor e o pior: os honrados são pobres, os ricos vilãos ruins, concertai-me esta geringonça» (Ato III, Cena II). Ora isto poderia ser quase um programa de Governo... e de governo da geringonça. (Para os amantes do antigo acordo ortográfico, sublinho que adaptei a ortografia original, de modo a que a compreendessem. Caso contrário vê-la-iam como idioma estranho).
A falar é que a gente não se entende
A palavra terá entrado no nosso burgo, diz o douto José Pedro Machado (1914-2005), autor do Dicionário Etimológico, talvez pelo castelhano girigonza: mas de onde vem este vocábulo estranho? Pois assim temos de recorrer ao etimólogo por excelência do Castelhano, Joan Corominas (1905-1977), que para mais era catalão. Diz ele que o termo pode vir de gergons, mais tarde jerga, que entra em Espanha através do Occitano (langue d’Oc) e tem o mesmo sentido que o francês (langue d’Oïl), jargon, que em português dá jargão.
Mas jerga, em castelhano, significa «Língua especial e não formal que usam entre si indivíduos de certas profissões e ofícios» (o mesmo que em português) ou «Língua especial usada originalmente com propósitos crípticos, ou seja escondidos, por determinados grupos e que depois se estende ao uso geral» (ainda semelhante a uma das definições em português) e jeringonza quer dizer «Linguagem difícil de entender». Curiosamente, também em português é isso, em primeira análise, que quer dizer a palavra geringonça. Ora consultai o dicionário, neste caso o da Porto Editora, que promoveu a eleição da palavra do ano:
ge·rin·gon·ça
(espanhol jerigonza, do occitano antigo gergons)
1. Linguagem vulgar ou informal. = CALÃO
2. Linguagem particular em certos meios. = GÍRIA
3. [Por extensão] Língua que não se compreende.
Só no sentido figurativo é que tem o significado de coisa mal feita ou de construção pouco sólida.
Será justo chamar geringonça a este acordo de Governo, como pela primeira vez o fez Vasco Pulido Valente, quando escrevia na última página do Público? Cada um avaliará. Mas se o sentido é o figurativo, diremos que é mal feito, mas já durou um ano. Pouco sólido? Talvez, mas mais robusto do que se pensava. Não sei se haverá geringonças duradouras, mas esta parece, pelo menos, não ser demasiado transitória.
Já se o sentido é o literal, temos sempre a linguagem informal ou vulgar. O ‘par de bofetadas’ de João Soares ou a ‘Feira de Gado’ de Augusto Santos Silva podem militar a favor de tal tese.
ILUSTRAÇÃO TIAGO PEREIRA SANTOS
Porém, se formos à origem espanhola, ou castelhana, em jeringonza, como sinónimo de «Linguagem difícil de entender», aí sim! Temos um encaixe perfeito. Recordemos o que se disse da CGD ou do Banif; do investimento que é para subir, mas não sobe ou da austeridade que era para acabar e persiste. Tudo isto tem uma linguagem rica e sofisticada, mas relativamente difícil de entender.
Mais difícil, porém, é entender o PCP e o Bloco, partes não desprezíveis da chamada geringonça, que dizem uma coisa, aceitam outra e atacam uma terceira (quase sempre o diabo encarnado em Passos Coelho). Por vezes, ainda, andam em campanhas contra opiniões expressas pelo Governo (seja no que respeita ao Euro e à Europa, seja no que diz respeito à gestão hospitalar), mas nunca largam o poder que vão tendo de influenciar o governo do país. Digamos que têm uma linguagem e atitude geringonçal (se me é permitido o neologismo).
Não quero ser tão pessimista como o nosso Jorge Ferreira de Vasconcellos quando escreveu «Aquele é apagado, aqueloutro carecido de vista (para não dizer parvo); outro deslustroso e eu não sei qual é o melhor e o pior». Mas lá que é preciso concertar a geringonça, aí o autor da “Comédia Eufrosina” tinha toda a razão.
Acima de tudo, sejamos positivos. Um Governo que tem um ápodo (que tanto pode ser uma alcunha afrontosa como um mero gracejo, de acordo com o já citado dicionário da Porto Editora) é um Governo que não é indiferente. E talvez pior do que um Governo mau seja um que nos deixe indiferentes, ao qual não se liga nem se apoia, nem se combate.
A palavra é bem escolhida e teve 35% das preferências dos 25 mil portugueses que participaram na escolha. Não creio que as outras – Campeão (29%) Brexit (8%) Parentalidade (6%) Presidente (6%) Turismo (4%) Racismo (4%) Humanista (4%) Empoderamento (3%) Microcefalia (1%) – tenham uma história tão rica.
in Expresso digital do dia 4/1/2017