«(...) [O] estado de crença relativamente ao reconhecimento de uma variedade angolana do português está longe de ser consensual. Tal deve-se ao facto de não existir uma prática institucionalizada de diálogo sobre o dever de acolher os contributos enriquecedores da ciência linguística e dos estudos literários (...).»
A posição das disciplinas de Filosofia, Língua Portuguesa e Literatura no currículo, programas e manuais escolares do ensino secundário deve conduzir à ideia segundo a qual o pensamento crítico é uma competência transversal que deve resultar da consolidação dos conteúdos cognitivos tendo em vista o desenvolvimento do raciocínio lógico.
É nas disciplinas de Filosofia, Língua Portuguesa e Literatura que se manifesta claramente o carácter transversal e o peso formativo do pensamento crítico, tal como é reconhecido nos planos de estudos dos cursos em que se integram. Elas revelam-se instrumentais no processo de aquisição de conhecimentos, compreensão do mundo e, consequentemente, de produção reflexiva e argumentativa. O peso formativo da Filosofia, da Língua Portuguesa e da Literatura verifica-se na relação que se deve manter com famílias de disciplinas propedêuticas e outras que mobilizam os recursos linguísticos.
O pensamento crítico é hoje considerado um barómetro da qualidade do capital humano nas diferentes economias à escala global. Constitui o produto de uma actividade intelectual complexa para a qual concorrem disposições, habilidades e competências múltiplas que constituem a competitividade dos países. A propósito do pensamento crítico, é evidente que os manuais escolares de Filosofia assinados por autores angolanos com a chancela das diversas editoras que operam em Angola não asseguram o cumprimento dos objectivos específicos definidos para essa unidade didáctica, segundo os quais «o aluno deverá ser capaz de identificar as principais correntes da filosofia africana, os seus principais autores, obras e doutrinas; desmistificar a ideia da inexistência da filosofia africana; a origem e importância da filosofia africana».
Associado à ausência de uma selecção cuidada, sequencialização sistematizada dos conteúdos e sua distribuição, à luz da necessária articulação das duas últimas classes do ensino secundário, o comportamento dos autores de dois dos manuais consultados traduz-se muito simplesmente em supressão da filosofia africana da lista de conteúdos programáticos da 11.ª classe. O certo é que os conteúdos dos manuais da 12.ª classe também não são suficientemente consistentes para evitar suspeitas, já que reproduzem a concepção eurocêntrica da história da filosofia. A ilustração é-nos fornecida por uma bibliografia que ignora os avanços registados em matéria de investigação, historiografia, tematização, debates e ensino.
Deste modo, as referências bibliográficas não incluem a mais recente produção de filósofos africanos e afro-descendentes das diásporas. Por outro lado, quando se avalia a percepção que as autoridades públicas angolanas têm da situação linguística e do ensino da Língua Portuguesa e da Literatura, é possível identificar as razões que estão na base da ausência de uma consistente política linguística.
Não se tem uma clara consciência acerca dos compromissos assumidos perante instrumentos convencionais da União Africana, tal como a Declaração de Harare, aprovada na Conferência Intergovernamental de Ministros sobre Políticas Linguísticas em África, em 1997. A sua importância foi reconhecida, em 2006 (Ano das Línguas Africanas), na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo, em Karthoum, quando foi atribuído o estatuto de bureau especializado à Academia Africana de Línguas.
Outro exemplo vem da terminologia jurídíco-constitucional. O legislador constituinte da República de Angola ignorou convenções como essa e outras, quando se confrontou com o rigor conceptual no tratamento das línguas nacionais. Como se pode calcular, sem uma teoria angolana da planificação linguística e correspondente política linguística não há sinais que assegurem a possibilidade de admitir a existência da variedade angolana do português. Aliás, é frequente ouvir dizer que as questões linguísticas não enchem a barriga. Mas a imagem predominante aí implícita tem vindo a ser contrariada pelo registo de honrosas excepções.
Há muitos bons exemplos. Bastará acompanhar as acções de investigadores, docentes, estudantes universitários e escritores. Mas isso permite apenas afirmar que o estado de crença relativamente ao reconhecimento de uma variedade angolana do português está longe de ser consensual. Tal deve-se ao facto de não existir uma prática institucionalizada de diálogo sobre o dever de acolher os contributos enriquecedores da ciência linguística e dos estudos literários. Qual a razão disso?
Variedade angolana sem advocacia sólida.
Nesta matéria, os que reivindicam autoridade para produzir um competente discurso científico e institucional estão desprovidos de legitimidade para o efeito, na medida em que o exercício dessa autoridade ocorre longe de qualquer escrutínio. Isto é, os que tomam a palavra nos círculos de tomada de decisão sobre questões respeitantes à «planificação linguística» e à «política linguística», aliás inexistentes, ignoram os imperativos de uma ética do diálogo e da discussão crítica.
Por essa razão, a variedade angolana do português, ou seja, o português angolano não conta verdadeiramente com qualquer advocacia sólida, fora das salas de aulas das instituições de ensino superior e gabinetes de alguns especialistas ou escritores. Em Angola, vai tardando o reconhecimento de uma investigação linguística que vise a legitimação da variedade angolana do português. Mas no princípio da década de 80 do século XX, tinham sido dados passos no estudo dos fenómenos da variação linguística.
Em boa verdade, os méritos do pioneirismo no estudo da variedade angolana devem ser atribuídos à professora Irene Guerra Marques que já em 1983, no Congresso sobre a Situação Actual da Língua Portuguesa no Mundo, realizado em Lisboa [em 1983], esboçava aquilo que poderia ser a estrutura de um atlas linguístico.
Nessa altura, apontava duas perspectivas: por um lado, sublinhava a existência das línguas nacionais que, na sua maioria, pertencem à família bantu e que constituem as línguas maternas de uma grande parte da população angolana e, por outro lado, a língua portuguesa, que, sendo a língua materna de alguns angolanos, constitui para a maior parte da população uma língua segunda, principalmente nas zonas rurais.
Durante as últimas décadas foram publicados apreciáveis trabalhos científicos de alguns especialistas angolanos. Mas são ainda escassos para o volume dos desafios. No domínio da linguística, destacam-se as teses de doutoramento e livros publicados por professores como Amélia Mingas, Maria Helena Miguel, Zavoni Ntondo, Afonso Miguel, Paulino Soma, Márcio Undolo, Mateus Segunda Chicumba, entre outros.
Por outro lado, as dissertações de mestrado e monografias de fim de curso de alguns estudantes das Faculdades de Letras e dos Institutos Superiores de Ciências de Educação dão a ideia daquilo que vem sendo o trabalho desenvolvido por alguns docentes, configurando o exemplo da excepção referida.
Cf. A questão da variação linguística e a norma + Defender a soberania epistemológica + Linguística da literatura angolana + O Dia Mundial da Língua Portuguesa e o pluricentrismo linguístico em Angola + O português angolano e a variação léxico-cultural no hip-hop + Dicionário Geral Monolingue da Língua Nyungwe
Artigo publicado no Jornal de Angola no dia 23 de junho de 2020. Escrito de acordo com a norma ortográfica de 1945.