«Temos [em Portugal] uma investigação em linguística educacional bastante consolidada e com passos muito firmes e uma boa colaboração entre a academia e os professores do ensino básico e secundário.»
REVEL – O que se entende por “gramática formal” nos estudos linguísticos contemporâneos?
J. COSTA – Os estudos formais da linguagem são os que recorrem a instrumentos de análise que permitem que, a partir de um conjunto limitado de princípios e/ou regras, se descreva, analise e prediga o funcionamento das línguas naturais. Sendo, na sua génese, modelos teóricos, são os que mais têm contribuído para descobertas empíricas no estudo das línguas, dada a possibilidade de, por irem para lá da descrição, colocar novas perguntas, procurar padrões de regularidade e explorar, através do que é gramaticalmente impossível, novas estruturas até então inexploradas.
REVEL – Como os estudos acadêmicos em gramática formal, criados em geral no ambiente científico-universitário, podem ser aplicados ao ensino e à aprendizagem de línguas?
J. COSTA – Seria impossível conceber um ensino da física ou da química que ignorasse décadas de investigação nestas áreas. De igual modo, não é possível conceber um ensino da língua que possa ignorar progressos científicos com mais de cinco décadas.
Não defendo uma aplicação direta dos modelos teóricos da linguística formal ao ensino e aprendizagem da língua materna. É necessária, contudo, a explicitação, para que haja um uso mais consciente da língua. A metalinguagem e a análise não são fins em si mesmos, mas devem existir para serem mobilizadas em opções conscientes no uso.
Para que isto aconteça, é fundamental construir materiais didáticos linguisticamente informados, em que os dados sejam organizados com sistematicidade e em que o desenvolvimento da consciência linguística seja planeado. De igual modo, a formação inicial e contínua dos professores não pode excluir uma formação sólida nas várias componentes dos estudos da linguagem.
Por vezes, a aplicação em contexto didático torna-se um campo de batalha entre especialistas em literatura e linguística ou entre diferentes correntes linguísticas. Não hesito em dizer que é, pelo contrário, o campo do encontro. Não posso trabalhar coerência textual se não tiver um bom domínio de marcas específicas, mas falharei se achar que todos os conetores têm o mesmo funcionamento sintático. É impossível ensinar a pontuar sem explicitação de funções sintáticas, mas só pontuo porque produzo textos. É impossível ensinar a ler fluentemente sem entender relações entre oral e escrito que vão muito para lá da mera relação entre fonemas e grafemas. É, por isso, fundamental que, em contexto académico, os especialistas em modelos formais comuniquem com os especialistas em linguística textual, sociolinguística e outros ramos relevantes. Se assim não for, podemos até condenar-nos à irrelevância e não contribuir para a melhoria dos sistemas educativos.
REVEL – Como é o ensino de Língua Portuguesa em Portugal? Há interação entre estudos de gramática formal e ensino de Língua Portuguesa para crianças e jovens em idade escolar?
J. COSTA – Felizmente, em Portugal existe já há várias décadas uma reflexão sobre o ensino da língua com grande capacidade de intervenção dos linguistas de diferentes áreas. Personalidades académicas, de diferentes gerações, como Inês Sim-Sim, Inês Duarte, Raquel Delgado Martins, Maria João Freitas, Margarita Correia, Ana Luísa Costa, Ana Maria Brito, Ana Lúcia Santos, Rui Vieira de Castro, Fernanda Irene Fonseca, Antónia Coutinho, Isabel Margarida Duarte, entre muitos outros que certamente não estou a nomear, constituem exemplos de linguistas de áreas diferentes com grandes contributos e intervenções no desenho de políticas educativas para a língua materna, nas mais variadas áreas: educação pré-escolar, elaboração ou consultoria nos programas, coordenação de programas de formação de professores, elaboração ou consultoria em instrumentos de avaliação, incluindo aferições e exames nacionais. Temos uma investigação em linguística educacional bastante consolidada e com passos muito firmes e uma boa colaboração entre a academia e os professores do ensino básico e secundário.
Penso que o melhor exemplo desta boa colaboração se pode ver no facto de ter sido a Professora Maria Helena Mira Mateus uma das fundadoras da Associação de Professores de Português.
Descendo ao concreto, com avanços e recuos, as orientações curriculares para o português, independentemente de práticas mais ou menos felizes, têm sempre incluído o ensino da gramática, não apenas na sua dimensão de explicitação de conhecimento, mas sobretudo prescrevendo-se o estímulo da reflexão sobre a língua e, como já referi, o desenvolvimento das consciência linguística enquanto estado intermédio entre o conhecimento implícito e explícito da língua.
Mais recentemente, têm sido muitos os contributos da linguística, em particular na área da aquisição da linguagem, para um planeamento de estratégias na articulação com a área da terapia da fala e intervenção precoce.
Temos hoje, em Portugal, uma escolaridade obrigatória até aos 18 anos, associada não só a conteúdos e competências a desenvolver, mas também a uma estratégia nacional de educação para a cidadania e a um regime jurídico para a educação inclusiva. Isto significa que ensinar língua materna é também um trabalho de capacitação para literacias múltiplas e potenciadoras de um respeito pelos direitos humanos, pela diversidade linguística e cultural, com fomento de capacidade analítica e crítica sobre o que se lê e ouve. Tal não acontece sem uma formação linguística adequada.
REVEL – Conte-nos um pouco sobre sua experiência como um linguista que é também o Secretário de Estado da Educação em Portugal. Como você concilia essas duas atividades?
J. COSTA – A passagem por cargos políticos tem de ser sempre assumida como transitória e como serviço público. Costumo dizer que “estou” secretário de estado, não “sou”. São funções muito intensas, que não me deixam o tempo para me considerar “linguisticamente ativo” neste momento. Sei, contudo, que a minha formação, a minha experiência de trabalho na formação de professores e na construção de instrumentos de apoio ao ensino, me dão uma maior capacidade de discernimento no desenho de políticas e em momentos de decisão.
Se não estivesse consciente do que é a diversidade linguística ou de como se processa o desenvolvimento linguístico, talvez as políticas de educação inclusiva, que fazem de Portugal um dos países do mundo com legislação mais ambiciosa e progressista, não tivessem sido desenvolvidas como foram.
REVEL – Tradicionalmente, deixamos a última pergunta da entrevista para que nosso entrevistado possa sugerir trabalhos influentes e sugestões de bibliografia sobre o tema para nossos leitores. Você poderia indicar, para os leitores, algumas referências importantes na área de gramática formal e ensino?
J. COSTA – Mais do que muita da literatura existente, deixo duas ligações para textos de apoio ao ensino da língua materna, produzidos para o Ministério da Educação, entre 2006 e 2010, sob coordenação e com a colaboração de vários linguistas portugueses, que me parecem constituir bons exemplos da relação produtiva entre o trabalho académico em linguística formal e a aplicação em contexto didático:
– Materiais didáticos elaborados no âmbito do Programa Nacional de Ensino do Português (PNEP);
– Conhecimento Explícito da Língua (Direção-Geral de Educação, Português).
Entrevista publicada no v. 19 n. 37 de 2021 da revista científica ReVel.