«(...) Os espanhóis só são 8% dos falantes de espanhol e, nesse sentido, o Instituto Cervantes trabalha pelo pan-hispanismo, quer dizer, por defender a cultura em espanhol, não só de Espanha, mas de toda a comunidade hispana.(...)»
Juntando todas as categorias, quantos falantes de espanhol identificam em Portugal?
O número de falantes de espanhol é difícil de identificar. Os registos que se dão em demolinguística são muito variáveis. Como são línguas de fronteira e que se entendem bem, quando se pretende contabilizar o número, é muito variado. Mas que tenham espanhol como segunda língua, e que, além de entenderem — porque entendemos um pouco com algum esforço —, falem o espanhol como língua aprendida, os registos dão-nos entre meio milhão e um milhão de portugueses, com vários níveis de conhecimento.
É um número que me impressiona, porque em Portugal pessoas que tenham língua nativa espanhola — imigrantes vindos da América Latina ou mesmo de Espanha — serão umas dezenas de milhares.
Sim, e também tradicionalmente o ensino de uma segunda língua em Portugal, desde o século XIX, é mais com o inglês e antes era o francês. A incorporação do espanhol no ensino regulado é muito recente. E é um trabalho que se faz pouco a pouco. Mas, como disse, os registos são muito abertos, porque há zonas linguísticas, há portugueses que vivem em Espanha, há portugueses que estudaram o espanhol, e acho que podemos falar de meio milhão de pessoas e depois para cima, em diferentes registos.
Nas zonas próximas da fronteira há pessoas que têm um grande conhecimento do espanhol porque veem a televisão e têm contacto diário com Espanha. Nota-se essa diferença regional nos números?
Sim, noto essa diferença regional. Claro, no caso do espanhol, ao falar do espanhol, não só estamos a falar de Espanha, mas também de toda a comunidade de língua espanhola. No último anuário nosso, registou-se que, a nível mundial, há 500 milhões de falantes nativos de espanhol. Por exemplo, a imigração latina em Portugal agora adquire um pouco de peso. Há, por exemplo, a imigração venezuelana e a imigração de alguns outros países latino-americanos, e é isso que nos contam também esses registos.
Mas estamos a falar de umas dezenas de milhares, no máximo.
Sim. Mas, nesse sentido, ao falar dos números, digo sempre, e estamos de acordo com os responsáveis do Instituto Camões em Espanha, que os registos às vezes são muito restritivos, porque ao virem para Portugal e com um pouco de esforço os espanhóis que trabalham aqui entendem-se com o português. Não têm um português académico, nem seriam aprovados num exame de conhecimento de português, mas podem fazer a sua vida quotidiana em português. E acho que com os portugueses acontece o mesmo em relação ao espanhol. E nesse sentido gosto sempre de subir os dígitos e fazer cálculos de pessoas que, de forma natural, em relações comerciais, em relações laborais, em intercâmbio, se podem entender nas duas línguas. Um dos nossos projetos é apoiar muito a comunidade não hispana, mas ibero-americana. E falamos de uma comunidade de mais de 800 milhões de falantes nativos do português e do espanhol.
Isso significa uma estratégia de atrair pessoas de outros idiomas para aprender português ou espanhol porque conseguiriam, de uma forma ou de outra, falar ou entender-se nas duas línguas?
Claro. E é uma forma também de realçar a importância do conhecimento dos nossos idiomas. Assistirei em maio a um congresso que organiza a OEI (Organização de Estados Ibero-Americanos) para reivindicar o diálogo entre o espanhol e o português. Ficamos muito entusiasmados quando estamos a aumentar os números de gente que se entende sem muitos problemas, quando há intercâmbios de comunicação em espanhol e português. Além disso, os dados económicos mostram que, por exemplo, o intercâmbio comercial entre idiomas tão próximos como o espanhol e o português se multiplica por oito e os investimentos se multiplicam por quatro, porque são idiomas em que é fácil entendermo-nos. Como diretor do Instituto Cervantes, defendo também a relação entre o espanhol e o galego ou do espanhol com o catalão, que são idiomas oficiais em que, com um pouco de vontade, pode passar a haver uma comunidade de entendimento. E a mim parece-me que potenciar o ibero-americano é muito importante para defender a nossa presença comercial, social e cultural no mundo.
O espanhol tem uma zona muito grande de falantes das Américas, mas qual a força do espanhol fora da América Latina? Por exemplo, na Guiné Equatorial, antiga colónia africana, é falado?
Sim, é o idioma oficial e fala-se nas ruas e estuda-se nos colégios, e por isso o espanhol, e foi uma decisão do governo, faz parte das línguas oficiais da União Pan-Africana e dos organismos oficiais africanos.
Falando de uma outra antiga colónia espanhola muito maior e na Ásia, as Filipinas. Sei que a colonização acabou em 1898 e veio o inglês dos americanos, que dominaram meio século o país. O espanhol não sobreviveu nas Filipinas?
O espanhol está muito desaparecido nas Filipinas. Há uma língua popular que se fala numa área concreta, que se conhece pelo nome de «chavacano», que conserva muito a sua raiz espanhola. Mas, lamentavelmente, o espanhol não se mantém como língua viva nas Filipinas, mesmo que exista uma academia de língua espanhola lá. E há uma literatura importante a estimular a cultura filipina em espanhol, que existiu como produto editorial bastante forte e que partiu de uma alta burguesia que tinha o espanhol como língua materna. Aliás, falo sempre do caso das Filipinas como um exemplo do malfazer político dos imperialismos, porque havia uma presença espanhola cultural muito forte e um escritor importante em espanhol, José Rizal, que foi um grande protagonista de todos os processos de identidade filipina. E ele lutou para que o país, no século XIX, deixasse de ser considerado uma colónia e fosse considerado uma província de Espanha, com os mesmos direitos de qualquer província e sem a servidão de colónia. Bom, José Rizal foi detido, foi julgado e foi fuzilado por ser antiespanhol, o que foi uma grande desgraça, porque era um grande escritor filipino em língua espanhola. E todo esse malfazer fez com que depois, com a chegada dos Estados Unidos e depois com a Segunda Guerra Mundial e o confronto forte ali entre japoneses e norte-americanos, as raízes espanholas, a cultura espanhola, desaparecessem, e agora só há uma presença muito dissimulada.
«(...) Sempre defendemos que há que manter a unidade e que deve haver preocupação na unidade da língua, mas respeitando a diversidade, porque, tal como não se fala o mesmo português no Sul ou na fronteira com a Galiza, também não é o mesmo espanhol na Andaluzia, em Salamanca ou na Catalunha, e não falo já dos milhares de quilómetros de distância que nos separam, pois pode falar-se espanhol em Madrid ou nos Estados Unidos. A diversidade é sempre importante e digo isto porque desde a presidência de Donald Trump houve uma política absolutamente contrária ao espanhol nos Estados Unidos. (...)»
Pelo contrário, uma zona onde o espanhol tinha desaparecido, mas que reconquistou, é o Sul dos Estados Unidos, não só pela emigração mexicana, mas porque há cada vez mais interesse dos próprios americanos em estudar a língua.
Há 500 milhões de falantes nativos, mas se somarmos os que estudaram e aprenderam espanhol esse número sobe para os 600 milhões. O país com maior número de falantes é o México, que tem mais de 130 milhões. Os espanhóis só são 8% e, nesse sentido, o Instituto Cervantes trabalha pelo pan-hispanismo, quer dizer, por defender a cultura em espanhol, não só de Espanha, mas de toda a comunidade hispana. E o segundo país em número de falantes são já os Estados Unidos, acima da Colômbia. Agora há registos de uns 60 milhões de falantes nativos de espanhol nos Estados Unidos. E nesse sentido a variedade é muito grande, porque, por um lado, há um número muito importante de imigrantes, sobretudo mexicanos. Por exemplo, há cerca de 12 milhões de falantes nativos de espanhol na Califórnia e uma presença muito forte mexicana, mas em estados como a Florida a presença cubana é que é muito forte, pela proximidade e pela situação política em Cuba. E em estados como Nova Iorque há também presença porto-riquenha e dominicana. Então, a partir daí, há um espanhol de imigrantes, há um espanhol de segunda geração, de filhos de imigrantes, e depois há um espanhol que nasceu entre o inglês e o espanhol. Tal como no México há uma forma especial de falar espanhol ou no Rio de la Plata e na Argentina há uma forma diferente de falar espanhol. E diz-se que mais do que espanhol, que é como nós lhe chamamos, deveríamos chamar-lhe «o espanhol dos Estados Unidos», tal como se fala «do espanhol do México». Bom, e em tudo isso é verdade que, graças à presença hispana no que se refere aos interesses profissional, comercial, laboral, a segunda língua que se estuda hoje nos Estados Unidos, desde os colégios à universidade, passou a ser o espanhol. E agora há muitos estudantes norte-americanos que falam inglês mas que estudaram no colégio ou na universidade espanhola. Mas vou contar-lhe outra coisa, porque ao falar das línguas surgem também os problemas de identidade. Nós defendemos a identidade aberta. Como já dizia um romancista cubano, Guillermo Cabrera Infante, o espanhol é muito importante, é tão importante que não pode ser deixado nas mãos dos espanhóis [risos]. Sempre defendemos que há que manter a unidade e que deve haver preocupação na unidade da língua, mas respeitando a diversidade, porque, tal como não se fala o mesmo português no Sul ou na fronteira com a Galiza, também não é o mesmo espanhol na Andaluzia, em Salamanca ou na Catalunha, e não falo já dos milhares de quilómetros de distância que nos separam, pois pode falar-se espanhol em Madrid ou nos Estados Unidos. A diversidade é sempre importante e digo isto porque desde a presidência de Donald Trump houve uma política absolutamente contrária ao espanhol nos Estados Unidos.
Mas acabou quando foi a eleição de Joe Biden, em 2020?
Não. Por exemplo, Trump removeu a página em espanhol da web da Casa Branca e Biden recolocou-a, mas há muitos norte-americanos reacionários que tentam unir o espanhol com a pobreza e o perigo da migração, como se fosse uma língua de pobres. E, de vez em quando, saem notícias de uma luta num supermercado, porque alguém na caixa fala em espanhol, ou num bar, porque há uma televisão a passar coisas em espanhol.
Há um nacionalismo anglo-saxónico antilíngua espanhola?
É um lema que diz «English only» ou «Only English». E é algo que se diz desde que os Estados Unidos se apropriaram do Texas e da Califórnia, que eram mexicanos, em meados do século XIX. E desde o primeiro momento houve a intenção de eliminar o espanhol, que era a língua nativa, e isso voltou com o republicanismo de Donald Trump. Acho que são medidas racistas, supremacistas, de acreditar que uma identidade tem de estar à defesa ou em guerra com as outras identidades.
Como é que o espanhol resiste em Porto Rico, há mais de um século território associado aos Estados Unidos? Sempre se manteve como a língua dos porto-riquenhos?
Sim, sempre se manteve como língua nativa. É muito conveniente apoiar o espanhol como língua nativa em Porto Rico, porque na era das comunicações, da internet, a extensão da cultura científica, do jornalismo e através das redes, faz com que a língua dominante se faça muito presente, como o inglês. Continua a ser a língua de identidade dos porto-riquenhos, mas a verdadeira aposta, e não só lá, está em que o espanhol seja uma língua de ciência e de tecnologia e que possa avançar pelas redes sociais, que se possa fazer ciência em espanhol. Nos nossos trabalhos ibero-americanos dizemos sempre que estamos muito orgulhosos de que o espanhol seja a língua de Miguel de Cervantes e de Gabriel García Márquez, mas a verdadeira aposta está em que o espanhol seja também a língua do progresso científico e tecnológico. E essa é a melhor forma de dar prestígio ao espanhol, para que os mais reacionários nos Estados Unidos não desprestigiem a palavra espanhola e tentem conscientemente que os filhos dos hispanos, nos colégios, se esqueçam das palavras espanholas.
E na China, superpotência emergente, como está o ensino do espanhol?
Os chineses estão interessados no estudo do espanhol e estão a ampliar os professores de espanhol nas universidades, e acho que o motivo do seu avanço é por possibilidades laborais e possibilidades de investimento e de negócio que a China encontra no espanhol. Neste sentido, não tanto em Espanha como na América Latina, os investimentos chineses na Argentina e na Colômbia são muito importantes. E isso é o que faz com que o espanhol seja tão popular como agora entre os chineses, por oportunidades também de trabalho.
Se tirarmos os Estados Unidos, o país onde o espanhol neste momento cresce mais é na China?
Sim.
Na Europa como é que está?
O espanhol é agora a segunda língua estrangeira mais estudada em 19 dos 27 países. E também o British Council aconselhou, como referente linguístico, que em todo o Reino Unido se estudasse espanhol como primeira língua estrangeira e é algo que se está a desenvolver bem. O que acontece na União Europeia é que é uma língua oficial nas instituições europeias, mas na realidade não é uma língua de trabalho, porque se trabalha sobretudo em inglês e francês. Mais uma vez voltamos à irmandade ibérica para conseguir que, além de línguas oficiais, o espanhol e o português possam ser línguas de trabalho. Veja que na Europa se tomou uma decisão política muito diferente da dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos quis-se impor o inglês como única língua, uma única língua que organizasse o estado. Na União Europeia declarou-se a oficialidade de todas as línguas e no dia 26 de setembro celebra-se o Dia das Línguas Europeias.
No mundo árabe, tão próximo, o espanhol também consegue ter algum tipo de sucesso?
O espanhol, enquanto língua de fronteira, é falado em algumas zonas do Norte de Marrocos e em algumas zonas da Argélia. Mas, na realidade, agora o que há é um interesse em aprender espanhol como segunda língua. Nós temos, por exemplo, Institutos Cervantes em Argel, em Orão e temos também em Tânger, em Tetuão, em Marraquexe, em Fez, em Casablanca, em Rabat e extensões em Nador e em Larache. Quer dizer, há um interesse muito claro pelo espanhol, que também se começou a estudar nas escolas. Isso parece-me muito importante. Abrimos também, mais a sul, um centro Cervantes no Senegal e também temos uma extensão na Costa de Marfim. Acredito que é muito importante que os países do Sul da Europa estabeleçam vínculos culturais sérios com os países de emigração, porque, de alguma forma, a integração favorece que a migração seja legal e se evitem as tragédias e a pobreza para entrar ilegalmente na Europa. E nesse sentido estamos a tentar fazer uma obra de difusão cultural das culturas africanas em Espanha e da cultura espanhola em África.
Está já a falar da África subsariana?
Claro que sim. Acho que demograficamente a grande explosão será na África subsariana, em termos de números de falantes. A América Latina aumentou muito o número de falantes de espanhol porque teve uma expansão muito forte, mas nos próximos 30 anos a população do Sul de África irá multiplicar-se por três e, nesse sentido, haverá um grande incremento do português, porque está bem presente na África subsariana, e do francês também, mas nós queremos que se estenda o espanhol como língua de estudo, mesmo que o colonialismo espanhol não se tivesse desenvolvido na África subsariana. Interessa-nos muito ter um observatório de espanhol na Guiné Equatorial, por exemplo, para ver de que maneira se pode difundir a cultura espanhola em África e a cultura africana em Espanha.
O Instituto Cervantes é o único na promoção da língua espanhola ou outros países, além de Espanha, têm institutos semelhantes para a promoção da língua?
O Instituto Cervantes foi fundado em 1991 e foi fruto da democracia espanhola. A ditadura e o franquismo tinham dado uma ideia imperial de Espanha, que era muito falsa. Porque, como digo, nós somos apenas 8% do idioma. Então, como é próprio da cultura democrática, reivindicou-se a unidade em condições de igualdade de toda a comunidade hispânica. E por isso nos Estatutos do Cervantes não está defender a cultura espanhola, mas sim defender a cultura em espanhol. E a maioria das nossas atividades na Europa, na Ásia, na América do Norte, são feitas em colaboração com as embaixadas latino-americanas. E, nesse sentido, a colaboração é muito constante. Criámos uma plataforma que se chama Canoa, que é a primeira palavra de origem indígena que entrou no espanhol, já no próprio diário de Colombo. E nessa plataforma estão o Instituto Caro y Cuervo, que é um instituto irmão da Colômbia, o Centro Cultural IncaGarcilaso, que é um instituto irmão peruano, a UNAM, a Universidade Autónoma do México, que tem um centro de línguas modernas muito forte, e a UBA, a Universidade de Buenos Aires. E, além disso, colaboramos também com a Direção de Relações Internacionais de Cultura do governo mexicano.
Há uma entidade que tente uniformizar o espanhol a nível mundial?
A Real Academia Espanhola compreendeu que não podia fazer sozinha um dicionário de língua espanhola, portanto agora o dicionário é feito por uma associação de todas as academias de língua espanhola a nível internacional, e chama-se AALE (Associação das Academias da Língua Espanhola). E aí estão também, a nível mundial, a Academia Espanhola da Guiné Equatorial, a Academia Espanhola das Filipinas e a Academia Espanhola dos Estados Unidos.
Então, para a grafia espanhola encontrarei uma regra que serve tanto no México como na Argentina ou em Espanha?
Há muitos estudos realizados sobre as variedades linguísticas do espanhol segundo as zonas. Mas o importante é que no caso do espanhol a unidade se mantém. E, por exemplo, no México, ou na Argentina, ou na Colômbia, há talvez duas palavras que podem ser usadas para dizer de forma diferente a mesma coisa. Ou na Argentina pode ser usada uma palavra diferente para chamar uma pessoa tonta ou para dizer que há um problema, mas são variedades que se integram e que por vezes dão lugar a algumas brincadeiras de caráter sexual, por causa de algumas palavras que servem para falar de relações sexuais ou do sexo masculino ou feminino. Em Espanha, para dar uma ideia, uma concha marinha é um caracol-do-mar, mas na Argentina a palavra concha serve para definir o sexo feminino. Em Espanha, a palavra polla é uma forma grosseira de chamar o sexo masculino. Em alguns países da América Latina, a polla é a lotaria. Então imagine um título de jornal que diga que a tal político, por ter tido sucesso em algo, lhe saiu a lotaria [risos].
«(...) O espanhol também tem esta vantagem de ser mais democrático, no sentido da extensão por quase 20 países. Enquanto no português existe este desequilíbrio muito grande por causa do gigante Brasil. A primeira gramática que se publicou para uso nas Américas foi escrita por um independentista latino-americano, que decidiu fazer uma gramática espanhola para uso de americanos. (...)»
Vamos pensar, por exemplo, em Mario Vargas Llosa, Nobel da Literatura peruano, também cidadão espanhol. Os livros dele, tal como ele escreve, é como são impressos nos diferentes países?
Sim, não há qualquer intervenção dos editores, não se pode falsificar a criatividade literária do escritor. E isso já foi causa de discussão, mais até do que na literatura, no cinema, porque alguns defenderam que convinha dobrar os filmes em que havia vocabulário muito mexicano, por exemplo, que não se utiliza noutros países, mas a tendência é manter a unidade porque se entende com facilidade. Por exemplo, li muitos ensaios estrangeiros que estavam proibidos em Espanha durante o franquismo, ou alguns escritores proibidos durante o mesmo período, e li em traduções que saíam em Buenos Aires. E havia um vocabulário de traduções que era argentino, mais do que da variedade espanhola e não há o problema de diferenciação. Acho que o espanhol também tem esta vantagem de ser mais democrático, no sentido da extensão por quase 20 países. Enquanto no português existe este desequilíbrio muito grande por causa do gigante Brasil. A primeira gramática que se publicou para uso nas Américas foi escrita por um independentista latino-americano, que decidiu fazer uma gramática espanhola para uso de americanos. E ele disse: «Vamos defender a nossa soberania, porque a soberania política é de cada povo. Mas não cometamos o erro de renunciar a uma língua em que nos educámos e que nos permite comunicarmos não só com Espanha, mas com a Argentina e o Chile, entre o Uruguai e o México». E, nesse sentido, não há diferença.
O Brasil, com 200 milhões de habitantes, faz fronteira com praticamente todos os países da América do Sul, tirando o Equador e o Chile. O português do Brasil ganha terreno nesses países? É mais forte do que o espanhol em algumas áreas?
O Instituto Cervantes tem no Brasil oito centros, é o país que mais centros tem, porque no governo anterior do presidente Lula cultivou-se muito a relação ibero-americana e a relação de vizinhança entre Brasil e América Latina, ou hispano-americana. O espanhol foi declarado como segunda língua e primeira língua, depois do português, nos colégios. Isso foi cancelado por Bolsonaro, porque estava mais interessado em estender o inglês do que o espanhol. Agora, recupera-se a dinâmica de uma aposta pela cultura em espanhol, mas não pela importância de Espanha, mas porque convivem com a Argentina, com o Chile e com todo um território latino-americano que fala espanhol.
«(...) Há agora um grande interesse em Espanha pela poesia portuguesa, por nomes como Eugénio de Andrade ou Nuno Júdice, e as edições são bilingues, para se poder ler tanto em espanhol como no original português. (...)»
Mas não se sente o contrário, a influência do português do Brasil nos países de língua espanhola?
Nos lugares que fazem fronteira há interesse pelo português e há muitos alunos do Brasil que vão estudar nas universidades argentinas e que depois também dão aulas de português na Argentina. Há um diálogo fluido e nos espaços de fronteira na América Latina há interesse pelo português.
Em Espanha, é sobretudo na região da Extremadura que há interesse em aprender o português?
Há muito interesse em Espanha por aprender, mas também há muito interesse — e isso é trabalho do Camões — em estudar as relações do português com o galego, as relações históricas. E em Espanha há cátedras de português nos departamentos de filologia românica, estuda-se português nas universidades. Não só há um interesse pessoal de pessoas que estudam Portugal porque lhes permite realizar-se em português, mas também há um interesse de marcar a irmandade portuguesa e espanhola, de forma a gerar uma política ibero-americana do Sul da Europa na Europa, e da Península com a América Latina.
Mas o espanhol que lê, por exemplo, José Saramago vai optar por uma versão traduzida dos livros?
Saramago está traduzido, e um espanhol lerá nas traduções em espanhol, embora haja sempre quem leia em português. Mas, por exemplo, há agora um grande interesse em Espanha pela poesia portuguesa, por nomes como Eugénio de Andrade ou Nuno Júdice, e as edições são bilingues, para se poder ler tanto em espanhol como no original em português.
Entrevista do diretor-geral do Instituto Cervantes, Luis García Montero, transcrita, com a devida vénia, do Diário de Notícias" de 12 de março de 2023, com o título original «Potenciar o ibero-americano é importante para defender a nossa presença comercial, social e cultural no mundo»