A nova arquitectura curricular e o programa de Língua Portuguesa trazem para a discussão o papel da literatura e dos textos literários no ensino da língua materna
Do Ensino Básico e Secundário chegam-nos, com infalível regularidade, notícias pouco animadoras: ou porque o insucesso em Matemática atinge níveis escandalosos; ou porque a falta de competências na língua materna, tanto ao nível da leitura como da escrita, é um constrangimento que o aluno transporta para todas as disciplinas; ou porque a taxa de desistência é, como ficámos a saber há poucos dias, mais do dobro da média europeia. De vez em quando, este campo devastado e frequentemente submetido à condição de laboratório de experiências é motivo pontual de gritos de alarme que têm quase sempre o efeito de concentrar a atenção no detalhe e deixar campo aberto para muita indignação pública e muita "opinião". Foi assim, ainda recentemente, a propósito do lugar concedido a "Os Lusíadas" nos novos programas de Português do Secundário: o cerne da questão estava, afinal, não num texto particular, nem sequer num corpus de textos (a discussão sobre o cânone, tão acesa noutros lados, mal tem aflorado, entre nós), mas no próprio papel a atribuir à literatura e aos textos literários em programas que, por circunstâncias várias, passaram a incidir muito mais sobre o ensino da língua.
A discussão em curso tem como motivo imediato dois factos complementares: por um lado, a substituição da disciplina de Português, na nova reforma do Ensino Secundário, por uma de Língua Portuguesa (trienal - abrangendo, portanto, o 10.º, o 11.º e o 12.º – e obrigatória para todos os cursos) e outra de Literatura Portuguesa (bienal e opcional para os alunos – e apenas para estes – que seguem o curso de Línguas e Literaturas); por outro, o modo como a literatura e os textos literários entram no programa dessa disciplina comum e obrigatória de Língua Portuguesa. Neste processo de reorganização, uns dizem que o novo programa de língua materna responde melhor às exigências actuais e ao estado de emergência a que se chegou, ao mesmo tempo que se ganhou uma disciplina de Literatura Portuguesa; outros, analisando o programa de Língua Portuguesa e relacionando-o com a lógica de autonomização curricular da literatura na nova disciplina opcional, dizem que ele consagra uma concepção meramente veicular da língua para a qual a literatura é um empecilho ou fica submetida a um uso instrumental, como se fosse um discurso entre muitos outros, passível de ser conformado a categorizações linguístico-tipológicas e, por conseguinte, encarado apenas no aspecto técnico do seu funcionamento linguístico.
Mas, para percebermos o que está em jogo nesta discussão (e como nela, pelo menos no modo como se tem desenhado publicamente a partir das reacções vinda da Universidade, há uma oposição entre professores de Linguística e professores de Literatura), precisamos de fazer referência a um estado de coisas já longamente diagnosticado e cuja história é fácil de traçar. Desde o final dos anos 70 até à segunda metade da década de 80 dominaram no ensino do Português os conceitos e categorias da linguística e da teoria literária. Dois elementos costumam ser utilizados no retrato paródico da "ciência" que foi servida aos mais novos como um "passe-partout": as "árvores" da gramática generativa e o esquema actancial da narratologia. Quando os resultados desastrosos das metodologias de análise linguística e de análise literária começaram a ser conhecidos, recuou-se para posições muito mais tradicionais. Entretanto, as chamadas "ciências da educação" entraram em cena, munidas de um arsenal "científico" que serviu, com frequência, para caucionar uma ideologia pedagógica que se expandiu e conformou à medida das contingências (massificação do ensino, permeabilidade da escola à "baixa cultura" e necessidade de a adaptar a novas condições de circulação dos saberes e aos valores simbólicos e reais que se tornaram dominantes). Nestas condições, por mais que os programas anteriores da disciplina de Português contemplassem um exigente percurso pela história literária, com tudo o que isso implica de conhecimentos transdisciplinares, a verdade é que, como mostram todos os diagnósticos, os alunos foram chegando ao final do Secundário com uma fraquíssima experiência das obras literárias.
O mesmo quadro negativo pode ser traçado quanto ao estudo da língua e à sua utilização. Inês Duarte, professora de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, explicou-nos que os alunos chegam hoje aos cursos de Línguas e Literaturas sem conhecimentos básicos, sejam eles de linguística ou de gramática tradicional, o que mostra como a erradicação das célebres árvores, dos sintagmas verbais e nominais, não serviu para repor os instrumentos mais adequados. Daí que tenha sido criada, para o 1.º ano, uma cadeira de Bases de Análise Gramatical, que serve para ensinar aos alunos universitários a morfologia verbal, o que é um adjectivo, o que é uma vogal, uma consoante, um ditongo. Ou seja, a Universidade vê-se hoje obrigada a fornecer conhecimentos que deviam ter sido ministrados no Ensino Básico e, por conseguinte, a integrar nos seus cálculos os problemas da iliteracia. Inês Duarte (acompanhada, aliás, pelos seus colegas de departamento) defende o programa da nova disciplina de Língua Portuguesa a partir de uma perspectiva que integra um vasto conjunto de factores: "Não podemos escamotear que os alunos do Secundário já não usam uma gramática. Dadas as suas fracas competências de compreensão e produção de textos, e tendo em conta os contributos fundamentais das ciências da cognição, uma disciplina de Língua Portuguesa não deve ser centrada exclusivamente na leitura, mas também na escrita e no desenvolvimento e treino de outras faculdades fundamentais, como a da compreensão oral, argumentação e exposição." E acrescenta:
"O programa não corresponde, evidentemente, a um curso de Literatura Portuguesa, mas não afasta os textos literários, eles estão lá, assim os professores, cuja carreira é muito pouco exigente, soubessem o que fazer com eles. A opinião pública acha sempre que se deve ensinar a mesma coisa de há trinta anos, mas a sociedade mudou e, além disso, sabemos hoje muito mais sobre os processos cognitivos. Sabemos, por exemplo, que não é a ler que aprendemos a escrever, o que não significa, evidentemente, que devamos prescindir da leitura para o exercício da escrita."
E, passando do texto dos programas para o contexto social e escolar, afirma que não é possível fazer de conta que não houve, entretanto, uma massificação do ensino e ignorar que a escola já não é a "escola dos herdeiros". Apesar dos maus resultados que as estatísticas registam, "os que hoje são muito bons são mais e muito melhores do que nós éramos, até porque têm um acesso ao conhecimento e à informação que nós não tínhamos. Os alunos que hoje não têm sucesso escolar são os que há trinta anos nem entravam no Secundário".
E, fazendo um balanço desta massificação repentina, em que não houve tempo para sedimentar experiências e saberes, Inês Duarte lembra que a maior parte dos professores – "e aqui é que reside o maior problema, não é nos programas" – não está preparada para sair da rotina e ir para além do manual.
Os manuais, recordemos, entraram como objecto recente do debate quando se descobriu que o regulamento do concurso televisivo "Big Brother" era antologiado num deles, com fotografias de alguns concorrentes a acompanhar, para iniciar os alunos num tipo de textos. O episódio fez crescer o burburinho e a indignação. Mas a atenção levantada por um aspecto considerado anedótico colocou mais uma vez as questões num plano que autoriza quem nunca consultou um manual, nem um programa, nem tem qualquer contacto com a escola a ter sólidas opiniões sobre o assunto. Não é o caso, obviamente, de uma professora de Português da Escola Secundária Marquês de Pombal, Maria do Carmo Vieira, que se tem empenhado, em vários artigos publicados no jornal "Público" e em entrevistas dadas a canais de televisão, na contestação aos manuais e aos programas.
Segundo esta professora, os manuais são o resultado lógico do programa que privilegia "desastradamente o texto informativo", consagra a "subalternização da literatura com o seu enquadramento nas diferentes tipologias de texto" e promove "a defesa miserabilista de que devemos atender aos discursos que os alunos trazem de casa". A carta aberta que pôs a circular na Internet (no "site" www.petitiononline.com/ensinopt/ ), dirigida "ao Senhor Ministro da Educação, ao Senhor Ministro da Cultura, à Assembleia da República e População em Geral", já recolheu mais de seiscentas assinaturas. Aí encontramos um grande número de escritores e professores universitários.
Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o programa de Língua Portuguesa, assim como toda a reorganização curricular do Secundário, está longe de gerar consensos e colocou em oposição professores de Literatura e professores de Linguística. O Departamento de Linguística, através de Inês Duarte, que tem no seu currículo uma vasta intervenção científica e institucional na área do ensino da língua, é o suporte mais poderoso do programa, que está a ser contestado de vários lados. Por seu turno, o Departamento de Literaturas Românicas tomou uma posição conjunta, subscrevendo um texto, publicado no último número da revista "Românica" (n.º 12, 2003), da autoria de Manuel Gusmão, que, em Março de 2003, quando o projecto de programa ainda estava em discussão, publicou neste jornal um artigo onde formulava algumas reflexões sobre as relações entre língua e literatura que lhe permitiam chegar ao argumento de que "a literatura não é redutível a um tipo de textos reconhecíveis por características estritamente linguísticas" e o levavam a afirmar que o projecto decorria de "uma amálgama de argumentos e preconceitos que são usados para justificar a redução do estudo ou do uso de textos literários no ensino da língua portuguesa". Professora do mesmo departamento e com uma visão do assunto muito próxima da de Manuel Gusmão, Helena Carvalhão Buescu também tornou públicas as suas críticas (no jornal "Público").
O que um e outro identificam no actual programa (e sigo agora uma conversa que, sobre este assunto, e para efeitos de reportagem, tive com ambos) é um modo de entender o texto literário como uma espécie de texto técnico e, como tal, "sem mais razões do que qualquer outro discurso". A lógica das tipologias de textos (por exemplo, a lírica de Camões é um item compreendido nos "textos de carácter autobiográfico", ao lado das memórias, diários e cartas; e um sermão do Padre António Vieira, dado como exemplo de "texto argumentativo", vem acompanhado do discurso político) resulta numa "tecnificação e regionalização da literatura". E acrescentam: "O texto literário é visto pelos autores do programa segundo a lógica da eficácia, do funcionamento, da aplicação. Subtraído ao horizonte dos possíveis, conformado ao que já existe, ele não abre o pensamento nem a imaginação." Comentando os objectivos pragmáticos do programa, que estão bem patentes na formulação que ocupa o primeiro lugar das "Finalidades da Disciplina de Língua Portuguesa" ("Assegurar o desenvolvimento das competências de compreensão e expressão em língua materna"), M. Gusmão diz que o programa, contraditoriamente, "está cheio de noções e de teorias traduzidas em trocos".
Por agora, a discussão, em termos universitários, parece ter ficado pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde, aliás, vai ter lugar, no próximo dia 25 de Março, um conjunto de debates e comunicações dedicados ao ensino do Português. Mas em Coimbra há, pelo menos, um professor que está a preparar uma intervenção pública: Carlos Reis, professor de Literatura e ex-presidente da Biblioteca Nacional. Considerando que "é absurda a fractura entre língua e literatura", C. Reis sublinha que a literatura, muito embora "não deva servir de referência normativa para o ensino da língua", também não é simplesmente "mais um tipo de texto, como o são os relatórios, as actas ou as cartas".
Nos seus traços mais importantes (e, provavelmente, sem que os intervenientes o queiram, até porque evitam polarizar os campos de maneira simplista), esta discussão torna patente uma oposição entre a cultura literária, baseada numa experiência mediada, e a cultura da literacia, com as suas exigências de eficiência e voltada para a experiência directa.
No modo como está redigido, o programa pode ser, também ele, visto como exemplo sem falhas de uma tipologia de textos que fazem uma utilização tão exasperada de códigos vocabulares e conceptuais da ciência ou do saber em que se inscrevem que acabam por produzir um efeito paródico, como se estivessem constantemente a ir para além dos seus próprios fins, em direcção a sítio nenhum. A linguagem deste programa é, do princípio ao fim, aquela que nos diz, por exemplo, que "a competência de comunicação compreende as competências linguística, discursiva/textual, sociolinguística e estratégica"; e que a escola deve promover "o uso de mecanismos de comunicação verbais ou não verbais como meios compensatórios para manter a comunicação e produzir efeitos retóricos"; e que "o professor deve constituir-se como entidade facilitadora de práticas de leitura". Evidentemente, o que alguém como Inês Duarte defende no programa não é esta linguagem nem este tipo de formulações, são as directivas que ele contém e cuja aplicação depende dos professores.
Folheando os manuais, podemos começar a perceber como é que o programa começa a ser posto em prática. Suspeitamos que de maneira demasiado literal, quando encontramos num manual ("Comunicar", Porto Editora) este convite: "Indica a intencionalidade comunicativa deste texto." Ou então: "Tendo em conta os conceitos objectividade e subjectividade, avalia a relação entre o enunciador e o enunciado." Mas, ainda antes disso, percebemos outra coisa: que os manuais são feitos para servir o professor, mais do que os alunos. Eles guiam o professor pelos textos e tutelam a orientação da aula. Tudo é feito para evitar que o professor fique desprotegido entre os textos e os alunos; tudo supõe que ele não é capaz de seguir o seu próprio percurso.
Mostrar aqui o quanto os manuais são, quase sem excepção, anedóticos, infantilizantes, pirosos, incapazes de uma linguagem rigorosa, cheios de erros na utilização de conceitos ocuparia um espaço de que já não disponho (o que não deve impedir-me de mencionar a única excepção que encontrei entre mais de uma dúzia de manuais: aquele que dá pelo sóbrio nome de "Antologia", publicado por Lisboa Editora, da autoria de A. Garrido, C. Duarte, F. Rodrigues, F. Afonso e L. Lemos, revisto por P. Morão). Mas é preciso que se diga que estes manuais não são apenas assim por causa do novo programa. Quem os fez assim, assim os fará em qualquer circunstância. Importa então perceber que neles transparece uma realidade do ensino da língua e da leitura dos textos literários que precisa de ser devidamente calculada.
Artigo publicado na revista "Actual" do semanário "Expresso", de 13-03-2004