Proferir ou escrever expressões como «hemorragia de sangue» ou «monopólio exclusivo» é incorrer numa reiteração inútil de ideias, porque hemorragia já significa «perda de sangue», e monopólio entende-se como «exclusividade no uso ou exploração de alguma coisa». Trata-se de associações de palavras que são erros e que na prescrição do bom uso se denominam «pleonasmos viciosos». Na verdade, mesmo aceitando que há construções redundantes intencionais que se legitimam pela sua expressividade – caso do «vi claramente visto» camoniano –, outras expressões existem que são mero resultado «da ignorância do sentido exato dos termos empregados, ou de negligência», como observavam Celso Cunha e Lindley Cintra1.
Nas listas de erros (uns verdadeiros, outros falsos) que pululam na Internet, encontra-se por vezes indexada a expressão «meio ambiente», com argumento de que meio e ambiente são sinónimos, e estaríamos todos, portanto, diante de um indiscutível pleonasmo vicioso. Mas será mesmo assim?
Compreende-se que, em certas situações, por exemplo, no contexto do discurso científico e das suas necessidades de estabilização terminológica, se empregue ambiente e se rejeite «meio ambiente», a bem do rigor e da capacidade de síntese da comunicação científica.
Convém, no entanto, assinalar o seguinte:
– A expressão «meio ambiente» é provável adaptação de milieu ambiant, expressão francesa sobre a qual, no Trésor de la Langue Française, se observa o seguinte:
«Rem. Milieu ambiant est noté par certains dict. (cf. HANSE 1949 et THOMAS 1956) comme étant un « pléonasme vicieux »; ,,Ne dites donc pas : il subit l'influence de son milieu ambiant. Dites : de son milieu ou de son ambiance ou l'influence ambiante. Mais on parlera fort bien de l'atmosphère ambiante.` (HANSE 1949). Cependant le syntagme est tenace [...], ambiant ajoutant l'idée immédiate, cela sans doute en liaison avec un élargissement de l'image de milieu.»
[Tradução livre: «Obs. Milieu ambiant [«meio ambient»] está registado em certos dicionários como "pleonasmo vicioso"; "Não diga: sofre a influência do seu meio ambiente. Diga: do seu meio ou do seu ambiente ou da influência ambiente. Mas falaremos muito bem ao dizer 'a atmosfera ambiente' (HANSE 1949). No entanto, o sintagma é resistente, com ambiant, «ambiente» a juntar a ideia imediata, sem dúvida em conexão com o alargamento da imagem de milieu, "meio".»]
Ou seja, em francês, apesar de discutível, a expressão é aceite, até porque a palavra milieu passou por um processo de alargamento de significado, ou seja, por extensão semântica.
– Entretanto, noutras línguas próximas do português, a situação parece ser esta: em espanhol regista-se medio ambiente (cf. dicionário RAE), mas em italiano não parece haver registo dicionarístico, o que talvez se entenda, quando, consultando o dicionário Treccani, se constata que mezzo («meio») e ambiente são sinónimos, donde se pode inferir que a sua junção será uma redundância.
– Importa igualmente referir que expressão francesa será, por sua vez, tradução de um termo recorrente nas obras de Isaac Newton (1643-1727) – quer em inglês (ambient medium), quer em latim (medium ambiens). Na origem, a palavra ambiente – ou melhor, as formas ambient (inglês) e ambiant (francês), com origem em ambiens, particípio presente de ambire, «rodear, cercar», e, portanto, com significado próximo de envolvente – funcionava como atributo de meio (originalmente medium, ou, no caso francês, milieu)2.
– É verdade que, em dicionários de português de finais do século XVIII a finais do século XX (o de Morais, em 1789, o de Domingos Vieira, de 1871, o de Caldas Aulete, de 1891, e o de Cândido de Figueiredo, de 1899), não há registo de tal locução nem como subentrada de meio, nem como subentrada de ambiente. Note-se igualmente que meio, nessas fontes, pode ser definido como ambiente, o que converge com a ideia de que «meio ambiente» é expressão pleonástica e, portanto, deve ser evitada. Entretanto, a expressão «meio ambiente» foi ficando registada: por exemplo, em 1966, figura no Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves; e hoje aparece em vários dicionários (Infopédia, Priberam, Academia das Cièncias de Lisboa, Aurélio XXI, Houaiss, Michaelis). Será, então, «meio ambiente» uma expressão indiscutivelmente incorreta?
– O tema já foi aflorado numa lista associada a uma resposta do Ciberdúvidas, na qual o comentário em nota já levantava dúvidas sobre a justeza de tal juízo de correção. Por outro lado, a questão também se encontra formulada recentemente no blogue do linguista brasileiro Aldo Bizzocchi, que, pronunciando-se sobre o assunto, chega à conclusão de que «meio ambiente» não é uma incorreção e observa que meio ocorre como palavra vaga: «Nem todo contexto em que se emprega meio admite ambiente como sinônimo (por exemplo, meio sólido, meio líquido, meio alcalino, etc.). Nesse sentido, ambiente é um adjetivo que especifica o tipo de meio a que nos referimos, assim como sólido, líquido e alcalino.»
Em resumo: obviamente que ambiente é uso que se recomenda e é preferível no discurso especializado; mas, no discurso corrente, há margem para tolerar «meio ambiente».
1 Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Edições João Sá da Costa, 1984, p. 618.
2 Ver Leo Spitzer, Milieu and Ambiance: An Essay in Historical Semantics, Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 3, No. 2 (Dec., 1942), p. 39.