Luís C. Maia, coautor do Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Secundário, dando «conta do que se vai fazendo para a desvalorização da Educação Literária», critica o Instituto de Avaliação Educacional (IAVE) e a presidente da Associação de Professores de Português (APP), Edviges Ferreira.
Uma das alterações introduzidas pelo Programa e Metas Curriculares de Português para o Ensino Secundário (PMCPES) foi a consagração da autonomia do domínio da Educação Literária. Esta emancipação foi considerada positiva pela maioria dos consultores do PMCPES e maior aceitação teve ainda dos que se predispuseram a dar a sua opinião durante a consulta pública realizada. Houve, obviamente, vozes que contra ela se levantaram, perfeitamente legítimas, por vezes apontando incongruências, tidas em apreço e que conduziram a modificações no documento. Sempre insuficientes para uns quantos, que teimam em considerar que o oferecido pela Educação Literária se pode amalgamar num genérico domínio da Leitura, que deveria equalizar tudo quanto é produção escrita, provavelmente desde o manual do mp3 ou da cafeteira até à poesia de Jorge de Sena ou de Ruy Belo, para não referir aqueles em que todos estão a pensar, sem esquecer a inevitável passagem pelos textos que saciem as mínguas burocráticas e administrativas da comunicação, como sejam o regulamento ou o contrato, meros exemplos. Porque, dizem, ler é sempre ler. E embora concedam que a leitura de «Boys custam 2,5 milhões por mês» e de «Camões Dirige-se aos seus Contemporâneos» não é a mesma coisa por exigirem actividades e capacidades cognitivas diferentes, tudo é leitura. Verdade mais verdadeira não há. E no entanto...
Não cabe aqui fazer a defesa desta não coincidência entre os domínios da Leitura e da Educação Literária, que julgo objectivamente expressa na introdução do PMCPES, consagrando o direito de acesso a um capital cultural comum e o reconhecimento da diversidade dos usos da língua, cabe antes dar conta do que se vai fazendo para a desvalorização da Educação Literária. Os sinais são muitos, mas o primeiro caso prático vem do Instituto de Avaliação Educacional (IAVE), que se esqueceu dela nas informações sobre as provas de aferição do Ensino Básico. Está lá tudo de Matemática, de Estudo do Meio e quase tudo de Português. Afirmou a tutela, na conferência Currículo para o século XXI, não haver intenção de fazer novas reformas curriculares e desejar incluir os professores na discussão sobre currículos e melhor exemplo não há, a menos que o IAVE tenha passado a ter como missão o desenho curricular pois parece difícil «acompanhar o desenvolvimento do currículo, nas diferentes áreas» quando se é amputado de uma delas. Tivessem ouvido os professores e eles lhes diriam se consideram ou não a autonomia da Educação Literária como um factor positivo no ensino da disciplina.
Quem, habitualmente, serve de “primeira figura” nestas questões é a estimável presidente da Associação de Professores de Português (APP), Edviges Ferreira. Coerência não falta pois desde o primeiro momento se tem revelado contra o PMCPES e, ao mesmo tempo, a APP tem para encomenda acções de formação sobre como operacionalizar o dito cujo, a preços razoáveis, diga-se. Afirmou (Expresso, 30 de Abril de 2016): «Os professores têm de se limitar a dar educação literária porque não há tempo para promover e treinar competências essenciais como a oralidade.» Lamento contradizê-la, mas os números são o que são: no PMCPES indica-se, para a Educação Literária, 37%, no 10.º ano e no 11.º ano, e 43%, no 12.º. São percentagens muito distantes de tão propalada e preocupante hegemonia e assentam, nunca é demais dizê-lo, numa proposta de atribuição de tempos lectivos que pretende, não mais do que isso, sugerir, permitindo que instituições e professores façam as suas escolhas. Mas a sua insuficiência aritmética não se fica por aí: «As próprias autoras do programa do 10.º ano referem que o mesmo deve ser dado em 140 aulas, quando, no total, só temos 130.» Em lado algum se afirma que se deve dar em x aulas o que quer que seja. Apresenta-se uma proposta que, para o ano em causa e para o 11.º, aponta para um total de 128 aulas, o que corresponde a 32 semanas de aulas quando, em média, os anos lectivos têm 33. Já na citada conferência afirmou, certamente baseada no estudo exaustivo das listas de obras recomendadas, que o PMCPES esqueceu o Plano Nacional de Leitura (PNL). Um pouco de atenção diz-nos que mais de quatro quintos das referências presentes no PMCPES estão no PNL.
Indo sem demora para «a grande falha do programa»: «Os alunos até podem acabar o 12.º ano a conhecer a literatura portuguesa do século XII ao século XX [grande desperdício, comento eu, rendido a tanta evidência, pois eles vivem no século XXI] mas não sabem escrever um texto mais prático como um relatório ou um requerimento, por exemplo.» E mais, eu completaria o rol com a declaração, a carta, o comunicado, a reclamação/protesto, enfim, tudo saudades do programa anterior (já agora, pergunte-se a quem está a leccionar actualmente o 10.º ano se as tem sentido). Seria bom, a título de exemplo, olhar um pouco para o programa do Ensino Básico e encontrar lá o relatório ou a carta. Se o que se pretende é que os alunos façam sempre mais do mesmo, seja. Uma das opções fundamentais do PMCPES é a de ‘texto complexo’, elemento crucial para a capacidade de ler inferencialmente. A complexidade textual não depende dos géneros textuais considerados e pode expressar-se, por exemplo, em textos de dominância, informativa, expositiva ou argumentativa. Um aluno que saiba ler um texto complexo, com não grande dificuldade, julga-se, alcançará a realização de um texto mais prático. Já a situação inversa não é tão linear. O que se procura é a criação de uma relação reflexiva com o conhecimento e não é pela mera acumulação de modelos de consumo que ela se instituirá.
A imagem que a presidente da APP quer deixar do PMCPES não é, felizmente, a da maioria dos professores que o estão a leccionar pela primeira vez. Dificilmente seria um documento para agradar a uma absurda universalidade, mas julgo que tem tido, até ao momento, uma aceitação relevante. O que não vale é dizer como o Duarte da garrettiana peça Falar verdade a mentir (outra vez a literatura): «mas a maior parte das vezes, as coisas contadas tais quais como elas são... ficam duma sensaboria tal...».
A submissão do texto literário ao domínio da Leitura é a sua minimização, a depreciação de um lugar para que confluem todas as hipóteses discursivas de realização da língua. Não tenho muitas dúvidas acerca do progressivo declínio do estudo do texto literário se tal sujeição se concretizar e o que estaremos a dizer, de modo muito claro, é que nem todos têm direito ao (re)conhecimento de uma matriz identitária que nos faz, é que a escola se demite de parte do seu papel, que passará por, como afirma o ministro da Educação, «garantir que todos tenham acesso ao conhecimento, integrando plenamente todas as crianças e jovens». Ou, como melhor nos ensina Manuel de Gusmão: «Ao trabalharmos com os textos literários nas aulas de português, consintamos em proporcionar aos estudantes um dom semelhante: o de se verem como não sabiam que eram, foram ou podem ser. (Uma Razão Dialógica. 2011)»
Texto transcrito do jornal Público de 15 de maio de 2016. Manteve-se a grafia seguida pelo jornal português.