O jornalista português João Miguel Tavares, em crónica intitulada "A Minha Carta para Greta Thunberg" e saída no jornal Público em 3/12/2019, falou dos «sacrifícios que foram feitos por milhões de homo sapiens que nos precederam». A sequência «milhões de homo sapiens» foi depois objeto de crítica noutra crónica (6/12/2019, na rubrica "Livro de recitações", do suplemento Ípsilon, do jornal português Público), da autoria do professor universitário e jornalista António Guerreiro, que considerou errado o singular homo sapiens, propondo como forma correta o plural latino homines sapientes. No entanto, este reparo é muito discutível, pois, de acordo com o revisor e tradutor Helder Guégues «[a] locução Homo sapiens designa uma espécie e, como tal, insusceptível de pluralização» (blogue Linguagista, 6/12/2019). O tradutor e latinista Gonçalo Neves, igualmente rebatendo a correção defendida por António Guerreiro, lembra que Homo sapiens há de escrever-se sempre com maiúscula inicial na palabra Homo, que significa «homem, ser humano» em latim.
Seguem-se os textos de António Guerreiro, Helder Guégués e Gonçalo Neves.
Na imagem, o homem de Vitrúvio na versão de Leonardo da Vinci (fonte: Wikipédia)]
1. Crónica de António Guerreiro
Esta ideia de nos apoiarmos no legado de gente extraordinária remete para uma gratidão em relação ao nosso passado, e aos sacrifícios que foram feitos por milhões de homo sapiens que nos precederam”
João Miguel Tavares, "A Minha Carta para Greta Thunberg", in Público, 3/12/2019
Eu poderia dizer que o texto de João Miguel Tavares podia servir de ilustração da definição de ideologia que dou no texto em cima; também podia apontar a contradição lógica de alguém que escreve «a minha carta a Greta Thunberg», ao mesmo tempo que denuncia os que usam a popularidade da jovem sueca «para se porem em bicos de pés». Mas aquilo a que fui mesmo sensível foi à declinação de homo sapiens no singular, quando a frase exigia o plural, isto é homines sapientes [1]. Este pecado gramatical, esta insensibilidade filológica, é de longe muito mais grave do que o aquecimento climático. Digo-o não do lugar de um latinista, mas de quem não perdoa à escola que lhe coube em sorte, no seu tempo de aluno, os métodos miseráveis e bafientos do ensino do latim, o que só me faz aumentar o respeito por tudo o que já esqueci.
2. Resposta de Helder Guégués
[...] Que exagero para aí vai, António Guerreiro. O que vejo logo é que João Miguel Tavares pelo menos usou o itálico, o que não fez no seu texto. Sim, homines sapientes é o plural de homo sapiens, mas atendamos ao contexto. A locução Homo sapiens designa uma espécie e, como tal, insusceptível de pluralização. (Neste ponto, também importava averiguar se em algum outro texto João Miguel Tavares a grafou Homo sapiens.) Todavia, como se pretendia referir um conjunto de espécimes do Homo sapiens, uma forma possível seria escrever «milhões de espécimes do Homo sapiens» ou algo semelhante. Jamais optaria – e eu também estudei Latim – por escrever homines sapientes, sob pena de trazer para um texto do século XXI alguma dessa miséria e bafio a que alude. Para terminar: nunca li em nenhum texto, científico ou não, português ou noutra língua, o plural homines sapientes para designar um conjunto de espécimes do Homo sapiens.
[Texto disponível aqui]
3. O parecer de Gonçalo Neves
Tem toda razão o Linguagista, e não a tem, nem pouco mais ou menos, António Guerreiro. A expressão Homo sapiens (assim, em itálico, e com o nome do género impreterivelmente grafado com inicial maiúscula) é o nome científico da espécie, englobando, portanto, todos os indivíduos pertencentes à mesma. Usa-se sempre no singular, mesmo quando nos referimos a vários indivíduos. Quando dizemos «os Homo sapiens», o que queremos dizer é «os indivíduos da espécie (cientificamente denominada) Homo sapiens». É assim em português e em todas as línguas que consigo decifrar. Eis apenas três exemplos, de três línguas diferentes, que respiguei ao acaso na Internet (os exemplos poderiam multiplicar-se facilmente):
«Los Homo heidelbergensis que se quedaron en África, en última instancia, dieron lugar a los primeros Homo sapiens anatómicamente modernos.» ( J. Anderson Thomson, Clare Aukofer: Por qué creemos en dios(es): Una guía concisa de la ciencia de la fe. Trad. Lorena Ríos, Pitchstone Publishing, 2015)
«Gish believes that some Homo erectus have no link to modern man [...].» (Glenn R. Morton: Adam, Apes and Anthropology, DMD Publishing Company, 1997, p. 35)
«Les premiers Homo sapiens sapiens seraient identifiés vers 300 000 ans en Afrique [...]» (Paul Haesaerts: Sessions générales et posters, Archaeopress, 2004, p. 57.)
Em bom português diga-se, portanto, «milhões de Homo sapiens». Se escrevêssemos, «milhões de homines sapientes», o significado seria outro: «milhões de homens sábios» (o que é completamente diferente)...
Polémica a propósito de um apontamento que o professor universitário António Guerreiro assinou no suplemento Ípsilon, do jornal português Público, em 6 de dezembro de 2019.