Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pretendo confirmar a tradução para português da divisa ou lema heráldico da rainha de Portugal D. Leonor, mulher de D. João II: «Preciosior est cunctis opibus.»

Resposta:

O texto correto da divisa da rainha D. Leonor é Pretiosior est cunctis opibus, que quer dizer literalmente «É mais preciosa do que todas as riquezas». Em textos medievais, porém, em vez de pretiosior, poderá encontrar-se a grafia preciosior, que reflete a pronúncia da época.

O adjetivo pretiosior é o comparativo tanto da forma feminina pretiosa («preciosa») como da masculina pretiosus («precioso»), pelo que, teoricamente, seria igualmente aceitável a tradução «é mais precioso». No entanto, como se trata de uma frase bíblica referente à sabedoria, deverá traduzir-se pela forma feminina, como se disséssemos: «(A sabedoria) é mais preciosa do que todas as riquezas».

A frase provém do chamado livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Salomão. O versículo completo (3:15), tal como se encontra na Vulgata, reza assim: Pretiosior est cunctis opibus, et omnia quae desiderantur huic non valent comparari («É mais preciosa do que todas as riquezas, e nada do que desejamos se lhe pode comparar»).

Devido ao prestígio da Vulgata durante séculos a fio, a referida frase foi inúmeras vezes citada, por vezes com certas adaptações, em todo o género de obras. Por exemplo, no célebre tratado de alquimia Aurora consurgens, encontramos o seguinte dizer: Et fructus illius est pretiosior cunctis opibus huius mundi1 («E o seu fruto é mais precioso do que todas as riquezas deste mundo»). Já numa b...

Pergunta:

[Pergunto] o porquê de em alguns textos antigos se escrever em fim de texto [a palavra latina] "vale". O prólogo da 1.ª edição do Dicionário de Morais, por exemplo, tem esse final, mas já a edição de 1945 não tem.

Resposta:

O verbo valĕo, vales, valēre, valŭi, valĭtum, que deu origem ao nosso valer, tinha vários significados em latim. Um deles, que nos interessa particularmente neste caso, pode traduzir-se por «ter saúde, estar são, estar bem de saúde, passar bem». Serviam-se os romanos amiúde deste verbo, não só para indagar sobre o estado de saúde de alguém (por exemplo, ut vales? ou quomodo vales?, «como estás?», «como tens passado?»), mas também como fórmula de despedida epistolar. Para este último efeito, recorriam ao imperativo singular vale! («passa bem!», «fica bem!») ou plural valete! («passai bem!, ficai bem!»), consoante o número de destinatários da missiva. Por vezes, para reforçar os votos, juntavam ao imperativo um advérbio, como bene («bem»), recte («como deve ser») ou feliciter («venturosamente”). Havia outras variantes, como fac valeas ou fac ut valeas (literalmente, «faz por estar bem»), que corresponde ao nosso «cuida-te», «tem cuidado contigo», e cura ut valeas, com o mesmo significado.

Esta fórmula de despedida epistolar, com as suas variantes, manteve-se ao longo de toda a latinidade, mesmo quando o latim deixou de ser uma língua nacional. Por exemplo, na obra Latim Renascentista em Portugal (Instituto Nacional de Investigação Científica, Coimbra, 1985), da autoria de Américo da Costa Ramalho (1921-2013), figuram várias cartas em latim, escritas por escritores e intelectuais portugueses dos séculos XV e XVI, e quase todas elas terminam com a fórmula vale, que o ins...

Pergunta:

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra bravo provém do latim vulgar brabus, que advém do étimo latino barbarus, o qual, por sua vez, se origina do grego bárbaros. Ora, tanto quanto sei, entre os gregos, bárbaro era o inculto, o não civilizado, aquele que, porque não falava grego, balbuciava. Contudo, ainda segundo o mesmo dicionário, a palavra em causa pode expressar também admiração, aplauso, vivo entusiasmo. Afinal, como se deu tal evolução semântica?

Resposta:

1. A barbárie...

De acordo com o Dictionnaire Grec Français de A. Bailly (27.ª edição, Paris, Hachette, 2000, p. 347-348), o adjetivo βάρβαρος ‎(bárbaros) tinha primariamente a aceção de «estrangeiro», ou seja, «que não é grego», ou melhor, «que não é helénico». Por extensão de sentido, referia-se igualmente a tudo o que se assemelhasse às línguas e aos costumes dos povos estrangeiros, ou seja, não helénicos. Neste campo semântico mais alargado, denotava os erros cometidos contra o bom uso da língua helénica e, como os gregos estranhavam os costumes dos povos estrangeiros, adquiriu igualmente a aceção de «grosseiro», «incivilizado», e mesmo «cruel».

Em latim, apesar de a aceção de «estrangeiro» estar representada, entre outros, pelo adjetivo peregrinus, que era bastante frequente, o vocábulo grego pegou de estaca, e barbarus, de acordo com o Dictionnaire Latin-Français de Félix Gaffiot (Paris, Hachette, 2000, p. 209), passou a designar tudo o que não fosse romano ou grego e, por extensão de sentido, tal como na língua de origem, adquiriu igualmente o significado de «inculto», «selvagem», encontrando-se todas estas aceções na obra de Cícero (106-43 a. C.). Nos escritos de certos autores cristãos, significava também «pagão».

A aceção de «estrangeiro», na linguagem corrente, perdeu-se em português, subsistindo apenas no vocábulo barbarismo, quando este se refere a um estrangeirismo reprovado pelos puristas, embora haja barbarismos que não são estrangeirismos. Importa realçar que

Pergunta:

As palavras diálogo e diabo possuem a mesma raiz etimológica?

Resposta:

O nosso vocábulo diálogo chegou-nos por via do latim dialogus, do grego clássico διάλογος (diálogos), e tinha, nesta língua, basicamente o mesmo significado que hoje conhecemos em português. O vocábulo grego é constituído por dois elementos: διά (diá) e λόγος (lógos).

O primeiro elemento era extremamente fecundo em grego: podia funcionar como preposição, advérbio ou prefixo, como neste vocábulo. Como prefixo, exprimia diversos conceitos: «separação», «de um lado ao outro», «aqui e ali», «de forma diversa», «um com o outro, um contra o outro», «parcialmente», «penetração», «através de», «superioridade», «acabamento, conclusão». No caso vertente, o prefixo tem o significado indicado em quinto lugar, ou seja, «um com o outro, um contra o outro». Este prefixo está presente em inúmeros vocábulos da nossa língua, herdados do grego por via do latim, ou seja, em vocábulos eruditos ou de cariz científico: diácono, diafragma, diagnóstico, diagonal, diagrama, dialeto, diálise, diâmetro

Pergunta:

Venho por este meio sublinhar um erro frequente cometido pelos jornalistas portugueses na referência aos arrondissements que são traduzidos por bairros. Ora, é consabido que bairro não é por regra uma divisão administrativa mas sim um lugar que é conhecido pelas suas particularidades, ao invés do termo arrondissement que é gerido administrativamente e no caso de Paris por vinte juntas de freguesia. O termo equivalente em português, freguesia corresponde amplamente ao que os franceses referem por arrondissement e à semelhança como se procede à divisão administrativa das cidades portuguesas.

Resposta:

Há três tipos de arrondissement em França (isto para não falar dos outros países francófonos): arrondissement municipalarrondissement départamental e arrondissement maritime. Só o primeiro – o arrondissement municipal – é que corresponde grosso modo à nossa freguesia. No entanto, enquanto a freguesia é uma divisão administrativa existente em todo o território português, o arrondissement municipal só existe em três municípios (communes) franceses: Paris, Marselha e Lião. Portanto, tem razão o nosso consulente, mas é necessário fazer esta ressalva, pois a equivalência não é total.

No que diz respeito aos arrondissements de Paris, referidos pelo consulente (tal como aos de Marselha e de Lião), creio, pois, que faz todo o sentido traduzirem-se por «freguesias». Já na retroversão, ou seja, na tradução de português para francês, é conveniente, pelo motivo já apontado, traduzir-se freguesia por arrondissement municipal (e não simplesmente por arrondissement), pelo menos na primeira ocorrência do termo. 

A tradução de nomes de unidades administrativas pode, aliás, revelar-se algo problemática, e não há soluções definitivas para todos os casos. Por exemplo, em escrituras e noutros documentos deste teor, quando traduzidas de português para espanhol e vice-versa, o termo freguesia é normalmente traduzido por parroquia e vice-versa, embora a correspondência não seja total. Por isso mesmo, alguns tradutores optam por acrescentar ao nome traduzido, entre parêntesis e em itálico, o nome original, para desfazer qualquer dúvida...

N. E.