Não é preciso explicar em que consiste a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS) aprovada pelo anterior Governo em 2004 e pelo actual em 2005 e que presentemente se encontra em fase de experimentação. Acerca da TLEBS (entendida como combinação da lista de termos e da base de dados com as suas definições), pretendo pronunciar-me sobretudo no plano da qualidade científica, até agora praticamente ausente da discussão.
Perante as inovações da TLEBS, é crucial saber se ela está em condições de servir melhor do que a Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 (doravante, NGP). Ora, tal avaliação é muito complexa, combinando diversos planos de análise: qualidade científica das opções assumidas, adequação didáctica e pedagógica, viabilidade de aplicação pelos professores, oportunidade ou necessidade e interacção com outras disciplinas. No que respeita à qualidade científica de partes essenciais da TLEBS, a minha avaliação não poderia ser mais negativa, pelo que antevejo consequências nefastas para a qualidade e para a eficácia do ensino de Português. Como é trivial, a avaliação incide sobre parâmetros clássicos: adequação dos termos e análises ao objecto de estudo e sua simplicidade e clareza, além da consistência, da economia e da elegância do sistema no seu conjunto.
Subscrevo a ideia expressa por Maria Alzira Seixo de que o estudo da língua não se esgota na linguística. Não obstante, rejeito confusões de esferas e misturas de competências. Lembro, por isso, que a linguística é a ciência que tem por objecto específico as línguas humanas, como sistemas que correlacionam sons (ou as suas representações gráficas) e significados, desde o plano das unidades mínimas até ao do texto. Tal estatuto não secundariza os sistemas de significação textual que importam à psicologia cognitiva, à lógica ou à filosofia em geral ou aos estudos literários. No entanto, a discussão em torno da TLEBS só terá a ganhar se for claro e pacífico que é em primeiro lugar aos linguistas academicamente credenciados que cabe a tarefa de analisar e discutir a validade científica de um produto como a TLEBS. As questões de outros ângulos de análise – perspectiva literária, lógica ou filosófica do texto, didáctica e pedagogia da língua, sociologia e psicologia dos processos de inovação, defesa do património cultural, etc. –, essas só ganharão com o contributo de todos os que podem enriquecer a discussão. Precedendo os comentários mais técnicos, focarei alguns pontos suscitados por intervenções recentes.
Um sofisma e vários equívocos
Constitui um sofisma a sustentação, por alguns defensores da Terminologia, de que esta interessa em exclusivo aos professores. A contradita desta posição está exarada no artigo 2.font face="Microsoft Sans Serif">º da portaria de 2004: «A TLEBS destina-se a constituir referência para as práticas pedagógicas dos professores das disciplinas de Língua Portuguesa e de Português, bem como para a produção de documentos pelo Ministério da Educação em matéria de ensino e divulgação da língua portuguesa.» Assim, os seus destinatários últimos são os alunos, e nem de outro modo se justificaria a designação adoptada. Portanto, sobre esta matéria, estamos conversados.
O primeiro equívoco que menciono é o de que a tradição gramatical greco-latina plasmada na NGP era o paraíso do conhecimento gramatical (e linguístico, já que a NGP não contém apenas as secções de Morfologia e de Sintaxe, únicas que toda a gente cita). Não era o paraíso, já que continha numerosos e grosseiros erros de nomenclatura e análise, que a reflexão linguística moderna veio em parte esclarecer. Aliás, isto só surpreende quem ignora a lentíssima evolução daquela tradição, onde, por exemplo, as classes de palavras pouco se alteraram até hoje, desde as oito introduzidas por Dionísio da Trácia (170-90 a. C.), hoje duas vezes milenares: artigos, nomes, verbos, pronomes, particípios, advérbios, preposições e conjunções.
É, pois, indiscutível que é relevante introduzir correcções, adições e até alterações de estrutura na NGP. Só um muito escasso conhecimento da complexidade de uma língua pode levar a dizer-se que a NGP é «adequada e suficiente», ou, concretizando mais, por exemplo acerca da noção de advérbio, que «o termo latino é perfeitamente compreensível para os alunos (junto do verbo, ou seja, que modifica o sentido do verbo)». A respeito desta última inverdade (alimentada por gramáticas), pegue-se numas gramáticas tradicionais, retirem-se exemplos das dez subclasses de advérbios estabelecidas pela NGP e verifique-se depois em quantos casos se acha, mesmo no plano intuitivo, que é rigoroso afirmar que modificam o sentido do verbo. A este propósito, vale ainda asseverar que não existe nenhum «magnífico volume» de gramática do português, como alguém classifica o trabalho que Celso Cunha e Lindley Cintra publicaram em 1984, ampliando e modificando ligeiramente uma anterior gramática só do primeiro autor, de 1970: contém erros e inconsistências, definições pobres, cobertura só das construções mais simples da língua (quase tudo isto já presente na versão de 1970 – em abono de Cintra, saudoso mestre), não deixando todavia de ser actualmente, sem dúvida, a melhor gramática do português. Adiante refiro algumas outras imperfeições da nossa tradição gramatical, que, curiosamente, a TLEBS deixa intocadas.
Um outro equívoco respeita ao ensino científico sobre a língua. Estou convicto de que as línguas devem ser estudadas pelos jovens como objectos de ciência, tanto como são o ar que respiram, a água que bebem, o binómio de Newton ou o código genético. As sociedades civilizadas têm assumido que a formação científica é essencial para o desenvolvimento cognitivo e que os jovens, sobretudo se apoiados, têm curiosidade e apetência pelo conhecimento científico. Não vejo, por isso, razão para que a linguagem humana não seja tratada nos sistemas de ensino como objecto de ciência. Claro, sem que o estudo da gramática constitua o único ou sequer o predominante modo de exploração da língua e muito menos que tenha como consequência o abandono ou a redução do estudo da Literatura. Dito isto, apoio a sugestão de Eduardo Prado Coelho de se dar maior importância à pragmática e à retórica, com especial ênfase na consideração da dimensão argumentativa da linguagem (mas, neste particular, sejamos justos: a secção Pragmática e Linguística Textual da TLEBS, descontados alguns excessos e noções deslocadas, abre caminho nesse sentido).
Na mesma ordem de questões, é pertinente perguntar por que razão haveriam os conteúdos de ensino acerca da língua de ficar imunes ao progresso do conhecimento. Não creio que devam e por isso lamento que haja quem apode de «enormidade» toda a inovação terminológica gramatical, sem separar o trigo do joio. Com a devida informação, concluir-se-á, por exemplo, que uma classe de quantificadores encontra justificação na ausência de identidade dos chamados «pronomes indefinidos», que a introdução de «modificador», noção transversal e unificadora, revela paralelismos dentro da língua ou que a dita classe dos advérbios algum dia precisará de uma mexida radical (não como a da TLEBS, muito duvidosa).
Do equívoco anterior decorre o de se achar que as inovações terminológicas sobre a gramática são más só porque os termos são complexos ou difíceis de captar. Que eu saiba, em nenhum outro domínio científico se coloca este tipo de questão, sendo as terminologias avaliadas com base nos critérios que enunciei. Concedo no entanto que, no ensino da gramática, dada a transcendência do fim último que é o desempenho linguístico dos alunos – compreensão e produção, na oralidade e na escrita – e o seu convívio gratificante com o texto literário, é preciso estar atento a que eventuais excessos de minúcia na análise (e não estou a falar da dissecação cruenta de uma estrofe de Os Lusíadas, como a que Vasco Graça Moura relatou...) não se tornem obstáculo à sua prossecução.
Qualidade científica global
No plano científico, considero a TLEBS inaceitável. Não, é claro, por ser inovadora, nem por pretender veicular uma postura científica, nem por conter termos complexos, mas, antes de mais, porque cientificamente não merece crédito e porque, mesmo que dele fosse digna, não poderia apoiar-se em materiais de consulta sólidos, nomeadamente uma boa gramática do português de perspectiva inovadora, que não existe. Adicionalmente, a TLEBS é chocante pela sua insensatez no que respeita à extensão, pelo carácter abrupto (se não brutal) da sua adopção e pela insensibilidade à coesão intergeracional.
Antes de explicitar as minhas críticas, respondo a uma pergunta que o leitor pode colocar-se: a TLEBS não está já avaliada e creditada cientificamente, uma vez que a sua base de dados de definições foi elaborada exclusivamente por docentes universitários? Lamento responder que não está. Em primeiro lugar, porque alguns dos seus autores não são as pessoas mais qualificadas do país nas suas áreas; em segundo lugar, porque alguns excederam os limites das suas competências específicas, tratando questões de que pouco ou nada entendem; finalmente, porque, por mais elevada que fosse a qualidade do trabalho realizado em separado por oito entidades distintas (indivíduos ou grupos), só por milagre a conjugação dessas peças autónomas no todo da TLEBS poderia ter resultado em algo de coeso e consistente, quando nem uma única vez essas diferentes entidades trabalharam em conjunto para articular a nova terminologia. É inimaginável o que digo, mas oiça-se o cândido depoimento de uma das autoras no sítio oficial da Terminologia: «Na TLEBS há duas definições para adjectivo, como para advérbio, nome e verbo. Esta duplicação resulta de cada domínio ter sido tratado por um diferente autor e nunca ter sido feito um cruzamento dos dados.» Lê-se e não se acredita. Como é possível que, em tais condições, tenha sido assumida a responsabilidade de verter tal Terminologia num diploma legal? Alguém terá de responder por tamanho absurdo.
É incontestável que a TLEBS apresenta aspectos positivos em todas as suas secções. Aí incluo novas áreas do conhecimento linguístico e termos pertinentes para os fins em vista. Infelizmente, os aspectos negativos são mais abundantes e também se detectam em todas as secções. Divido-os em três tipos: (i) deficiências metodológicas, (ii) erros de formulação e (iii) erros conceptuais. Como é natural, concentro-me nas secções que coincidem ou mais directamente se cruzam com a minha área de especialidade – Classes de Palavras, Sintaxe, Semântica Lexical e Semântica Frásica – e faço algumas breves observações sobre a Morfologia.
Deficiências metodológicas – concepção global
O primeiro problema metodológico da TLEBS é a ausência de uma concepção global do sistema linguístico. Tal é patente, por exemplo, numa subdivisão do «domínio» Linguística Descritiva que favorece uma visão fragmentária da língua e da gramática, particularmente nociva na separação estanque entre, por um lado, a Morfologia, as Classes de Palavras e a Semântica Lexical e, por outro, a Sintaxe e a Semântica Frásica. As repercussões da desagregação conceptual vêem-se em questões tão básicas como a fixação do sentido do termo palavra, definido na Morfologia e na Semântica Lexical e omnipresente nas Classes de Palavras, mas de forma inconsistente. Na Morfologia, apresentam-se quatro classes de palavras – adjectivos, nomes, verbos e advérbios –, ao passo que nas Classes de Palavras se introduz a distinção entre «palavra variável» e «palavra invariável» (não na Morfologia, note-se) e são apresentadas dez categorias de palavras, dispersas numa hierarquia em árvore totalmente inorgânica. Também resultado da falta de articulação global, são as indesejáveis repetições de definições de termos através das secções, como as de «nome contável» e «nome não contável», as dos valores restritivo e explicativo das orações relativas e as dos valores «definido» e «indefinido».
Outro caso exemplar do carácter desintegrado da TLEBS é o dos sistemas de valores tradicionalmente apresentados com a flexão dos verbos: tempo, aspecto e modo. O que a este respeito a TLEBS oferece é um quadro inteiramente disperso e, ainda por cima, mais incompleto do que o da NGP. O tratamento destes sistemas é erróneo, atabalhoado e incompleto, para além de estar expresso numa arenga quase ininteligível. A agravar, a categoria «modo» não tem definições próprias.
Deficiências metodológicas – definições impróprias
Sendo as definições da TLEBS produzidas por docentes universitários, é verdadeiramente inquietante o teor de muitas delas, exemplos perfeitos de como não se deve construir uma definição. Algumas nada definem, constituindo puros círculos viciosos. Dois exemplos apenas: «modificador» define-se como «função sintáctica desempenhada por constituintes não seleccionados pelo núcleo do grupo sintáctico que modificam»; de «eventos prolongados», diz-se: «Os eventos prolongados são eventos aos quais é associada uma duração; uma vez atingido o seu último ponto, por definição o evento prolongado não pode prolongar-se» (pontuação minha). Não julguem os soldados de Monsieur de La Palice que diriam melhor! Outras definições remetem para sobreconjuntos e subconjuntos da entidade a definir, passando-lhe à margem, por exemplo a de «artigo» – «palavra pertencente a uma subclasse dos determinantes e que tem duas subclasses: a dos artigos definidos (...) e a dos artigos indefinidos (...)»; é isso mesmo, tal como «ser humano» se definiria assim: «um animal que pode ser homem ou mulher».
Ainda no que respeita ao teor das definições, outro flagelo é o recurso sistemático a termos não definidos e que não podem ser tomados como primitivos. Exemplos ao acaso: especificar (em numerosas definições, sem o sentido dicionarizado), domínio (como conceito com base no qual se define frase), os dispensáveis neologismos discretizador, enumerador e correspondentes verbos (usados na definição de [nomes] «não contáveis/massivos») e «caso» e suas variantes, também nunca definidos.
A obscuridade é outra deficiência recorrente, presente nestas pérolas de ingénua tacanhez: «significado» – «designação utilizada para fazer referência ao conteúdo semântico correspondente ao conceito veiculado pelo signo linguístico»; «extensão semântica»: «Característica própria da evolução das unidades lexicais, no seio da dinâmica da língua, cujos conteúdos semânticos são susceptíveis de adquirir novas polissemias, através do uso»; «tempo»: «O tempo linguístico é uma categoria gramatical que exprime a localização de uma situação representada por um conteúdo proposicional num sistema referencial definido pelas coordenadas enunciativas locutor e tempo da enunciação; é assim possível a interpretação referencial desse conteúdo proposicional» (pontuação minha). Esta última definição, sobre ser uma luminosa peça de mau português (veja-se o engenho com que os dois períodos são ligados por aquele assim...), não vejo como poderia ser mais obscura no conteúdo.
Erros de formulação ou de concepção
Surgem na TLEBS definições rotundamente erradas, que não concebo que os autores assumam, se pensarem. Não podendo mostrá-las aqui, selecciono alguns dos muitos termos mal definidos: «artigo definido vs. indefinido», «determinante demonstrativo», «pronome demonstrativo», «sujeito» (definido como «função sintáctica central, desempenhada pelo constituinte do verbo que controla a concordância verbal» (!!!).
Mais importantes ainda são as definições incorrectas que deturpam a arquitectura da frase. O exemplo mais clamoroso é continuar-se a conceber «frase subordinante» como a «porção da frase complexa que exclui todas as subordinadas nela encaixadas», análise já banida nas recentes gramáticas de referência do inglês, das grandes línguas românicas e certamente de outras línguas (e até numa gramática portuguesa, de que é co-autora a responsável da Sintaxe). Acresce que a própria TLEBS é inconsistente nesta matéria, quando explicita «os diferentes domínios frásicos» de uma frase complexa. Também as orações relativas, com ou sem antecedente, saem maltratadas da TLEBS, que uma vez mais se mostra irracionalmente conservadora, incapaz de alterar o que está errado. Ainda no domínio da frase, é lamentável a forma inadequada como são tratadas as conexões interfrásicas de tipo conclusivo e explicativo.
Os erros de análise gramatical surgem noutros campos da gramática. Dou como exemplo os advérbios, os quantificadores e o aspecto verbal. Os primeiros constituem, como já referi, uma pseudoclasse variada e complexa, sem solução satisfatória conhecida. Pelo que estudei em muitos anos, apetece-me parafrasear Churchill acerca da democracia: o conceito de classe de advérbios da gramática tradicional é o pior que se possa imaginar, se exceptuarmos todos os restantes. Ora, a TLEBS não tem pruridos: mantém a macroclasse (o que seria talvez a primeira coisa a não fazer por quem tivesse coragem e habilitações para tanto) e avança com uma nova subclassificação. Não resolveu, porém, o problema milenar de identidade, como é visível em mais uma definição caracterizada pela indefinição: «advérbio» – «palavra invariável em género e número, pertencente a uma classe com elementos com características bastante heterogéneas do ponto de vista morfológico, sintáctico e semântico. Pelo seu carácter absurdo, não resisto a revelar que, numa frase como o João mora possivelmente ali, o advérbio possivelmente é considerado um «modificador» de ali, isto é, diz-se que ali identifica um lugar e possivelmente ali identifica outro. Trata-se de uma análise totalmente incorrecta, sem qualquer sustentação semântica.
No que respeita a quantificadores, a TLEBS é também infeliz. Primeiro, com as cinco subclasses estabelecidas (universais, indefinidos, numerais, relativos e interrogativos), mescla sem qualquer sentido, onde operam três paradigmas diferentes: valor semântico quantificacional (em «universal» e «numeral»), valor semântico não quantificacional, antes relativo a dependências referenciais (em «indefinido»), e estrutura sintáctica (em «relativo» e «interrogativo»). Em segundo lugar, é espantoso que sintaxistas se sintam com autoridade para banirem do domínio da quantificação os antigos numerais fraccionários e multiplicativos. Com idêntica falta de crédito, incluem na classe operadores como outro(s) e certo(s), cujo valor não é primordialmente quantificacional. Se estes operadores são quantificadores, então também os artigos definidos e indefinidos o são. Quem escreveu sobre quantificadores ou não sabe do que está a falar ou sabe e decide arbitrariamente contra a literatura da especialidade. Por último, rejeito liminarmente a classificação de cujo e suas variantes de género e número como quantificadores.
Termino com uma referência à noção de «aspecto», de contornos delirantes. Imagine-se que quem escreveu sobre as noções de «aspecto durativo» e «aspecto pontual» propõe esta espantosa semântica do tempo: são durativas todas as situações que se realizam num intervalo de tempo não vazio, incluindo as que lógicos e semânticos têm considerado serem pontuais (ou instantâneas) – isto é, realizadas num intervalo de tempo que se convenciona ter um instante apenas; em segundo lugar, as situações pontuais são as que estão fora do tempo, que se realizam num intervalo de tempo vazio, no tempo nulo. Professores de Português: leiam Einstein, que talvez ajude. Eu, por mim, já fiz uma opção definitiva: quero morrer com aspecto pontual, ou seja, no tempo nulo. Será que resulta como estou a imaginar?
E, agora, Senhora Ministra, Governo, Estado?
Lamento dizer que os comentários que aqui expendi mais não são do que uma pálida amostra do muito mais que há para dizer de negativo acerca da TLEBS. De novo afirmo que reconheço existirem na TLEBS partes que, após revisão cuidada, são de acolher. Não tenho, porém, dúvidas em declarar publicamente, com plena convicção e sentido de responsabilidade, que o conjunto que abrange a Morfologia, as Classes de Palavras, a Sintaxe, a Semântica Lexical e a Semântica Frásica – precisamente o cerne do sistema linguístico – apresenta deficiências e lacunas de gravidade tal, que fazem desta terminologia, como um todo, um objecto que não merece crédito científico, que envergonha a linguística portuguesa e o próprio país e que não se entende como pode estar a ser introduzido no sistema de ensino. Se alguém tivesse como objectivo contribuir para tornar o ensino do Português algo de odioso para os alunos, não poderia ter dado melhor ajuda.
Considero a TLEBS uma calamidade que se abate sobre o país. Por isso, como cidadão e linguista, apelo à Senhora Ministra da Educação no sentido de travar o insano processo da TLEBS. Em nome do rigor e da qualidade científica e a bem do ensino de Português, corrija erros alheios, suspendendo a sua aplicação e nomeando de imediato uma comissão de peritos que avalie a situação. Existem em várias universidades portuguesas linguistas – entre eles, três ou quatro professores catedráticos – de formação ampla e visão desapaixonada e não comprometidos com este lamentável episódio nem com as preferências de escola dos seus protagonistas, que estão em condições de aconselhar uma decisão política difícil. Veria com muito interesse que a tal comissão se agregassem, como consultores, outras personalidades que trabalham sobre a língua. Refiro-me, antes de mais, a professores de Português de reconhecida competência, aos universitários que editam os nossos escritores clássicos (Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Pessoa...), aos nossos tradutores de excelência (que traduzem Homero, Dante e Petrarca, Cervantes, Proust, Goethe ou Rilke...), a jornalistas intervenientes sobre questões da língua (de que Francisco Belard é um exemplo incontornável). Estes e outros poderão trazer aos linguistas, a quem cabe garantir a adequação científica de termos e definições, o quantum satis de sentido da realidade e, talvez também, de bom senso e até de bom gosto, de que eles não detêm seguramente o exclusivo e que não têm de possuir em abundância. Não disse alguém que a guerra era séria de mais para ser deixada só aos militares? Pois bem, a terminologia com que todos falaremos sobre a língua que em parte nos identifica talvez mereça preocupação análoga. O que não pode acontecer é, como parece ser o caso, estar a TLEBS a ser revista pelo grupo a quem foi confiada e que já mostrou do que é e não é capaz. Pelo menos alguns dos seus membros já revelaram à saciedade não ser idóneos para continuar ligados a este processo e seria um escândalo nacional que nele se mantivessem.
Uma recomendação final: não se esqueçam os futuros responsáveis de que há mais países que têm o português como língua oficial, em particular o Brasil, que suponho ser o único com terminologia gramatical própria. Quando foi elaborada a NGP, houve o cuidado de seguir muito de perto a brasileira, que era de 1959 e penso não ter mudado ainda. Será possível que ninguém se tenha lembrado de que criar uma terminologia abissalmente diferente da brasileira só poderia contribuir para cavar um fosso maior do que o que já existe e que em nada beneficia Portugal? Para além de por vezes não conseguirmos comunicar plenamente, será que passaremos, brasileiros e portugueses, a já não poder referir com as mesmas palavras a língua que, apesar de tudo, ainda nos é comum? É preciso agir, e com muita coragem, Senhora Ministra.
Artigo publicado no caderno "Actual" do semanário "Expresso" do dia 8 de Dezembro de 2006.