Desde 28 de Setembro e até ao final do ano, está disponível para «discussão pública» uma versão revista da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (adiante, TLEBS-2). Não reconhecendo credibilidade científica nem deontológica a todo o processo, da elaboração inicial à revisão, não participarei formalmente na dita discussão. Não frustrarei, todavia, quantos esperam que tome posição.
A versão revista introduz alterações substanciais, quantitativas (redução de 40% dos anteriores termos) e de conteúdo. Neste plano, avultam a quase supressão da semântica combinatória (que, com a sintaxe, faz o essencial da gramática), a dilatação da retórica e adições no domínio da análise do discurso. Ressalvando que não tenho competência para apreciar todas as matérias, é minha impressão que, em geral, o documento está agora mais equilibrado, salvo no respeitante às secções das Classes de Palavras, da Sintaxe e da Semântica, em que me irei deter (para alguns outros aspectos, vd. «Outras Notas» em www.jperes.no.sapo.pt). Nestas áreas, considero que se mantém uma postura obsessivamente sintacticista, em que a descrição da forma - categorização e ordem - se impõe, secundarizando o significado. Como, porém, tal orientação é impraticável (o significado está em toda a parte), o resultado é uma sintaxe do esqueleto da língua, alheia à significação, ou, aqui e ali, uns assomos de semântica pré-científica, ingénua quando não mesmo errónea.
Apontarei alguns erros metodológicos e focarei a ruptura entre sintaxe e semântica e a falta de rigor em relação a questões de ordem matemática. Acentuo que desta vez serei muito menos explícito, já que o texto da revisão exclui da lista das suas fontes o que foi publicado na imprensa ou na Internet (apesar de quase integralmente consagrado na revisão). Para quê tanto trabalho, se os revisores aparentam ignorá-lo?
Velhos e novos erros metodológicos
Em anterior artigo, referi a existência de definições impróprias na TLEBS. Pois bem, a revisão contém ainda definições vazias de informação distintiva, como, p. ex., a de «grau» («variação apresentada por alguns nomes, adjectivos e advérbios, que permite estabelecer uma gradação no significado de uma palavra ou a comparação entre termos») ou a de «modo» («categoria morfológica que permite distinguir a flexão verbal nas formas do indicativo, conjuntivo, imperativo e condicional»), e outras que se imbricam em pura circularidade, como as de «palavra» e de «léxico» ou as de «significado» e «sentido». Um outro tipo de vício consiste em sobrepor conceitos, anulando distinções importantes. É o que acontece ao definir-se «frase» em função de «enunciado», impedindo o contraste entre o objecto gramatical frase e o objecto pragmático enunciado. A propósito, e ainda que numa outra ordem de questões, vale a pena registar que, para se tomarem «frase» e «oração» como sinónimos, não valia a pena ter os dois termos. Valeria, sim, se fossem usados para estabelecer diferenças que existem.
No plano metodológico, há também que referir o curioso expediente a que se recorreu para enfrentar as críticas à manutenção na TLEBS do erróneo conceito tradicional de «frase subordinante», segundo o qual, dada a frase a Ana disse que não queria ir, a frase subordinante seria apenas a sequência a Ana disse. Na revisão, em vez de se adoptar uma das soluções das grandes gramáticas contemporâneas de outras línguas, cria-se um novo conceito de «subordinante», que deixa de ser uma frase para passar a ser qualquer «palavra, constituinte ou frase de que depende uma oração subordinada». Nestes termos, no exemplo dado teríamos na mesma uma oração subordinada (que não queria ir) mas o «elemento subordinante» seria agora apenas a forma verbal (disse). Como único exemplo de oração subordinante, temos um caso com subordinada adverbial (eu compro um carro, quando tu me deixares). Obviamente, o intuito é deixar em aberto a questão a tratar, que era a da relação entre estruturas oracionais e não entre um verbo e um seu complemento frásico ou outras. O truque da revisão não só nada resolveu como ainda introduziu um termo inútil («subordinante» sem mais, não oracional, usado por gramáticos antigos com a noção de «regência»), já que os conceitos díspares que recobre não careciam de unificação terminológica. Fica-se com a impressão de um jogo sem regras e com algumas manhas.
A dissociação de forma e conteúdo
O trabalho aprofundado sobre as línguas mostra que poucos são os domínios da forma linguística acima do fonema caracterizáveis sem recurso ao significado. Prova disso é o elevado número de definições de termos sintácticos das TLEBS que recorrem a noções semânticas. Neste quadro, torna-se crucial verificar se essas noções são bem utilizadas. A minha conclusão é que não são, como tentarei demonstrar.
Desde a década de 70 do século XX, tornou-se consensual entre os linguistas com uma visão global da linguagem a ideia de que as classes de palavras não podem ser definidas, como pretendeu o estruturalismo norte-americano, em função apenas do contexto sintáctico, mas também dos tipos de entidades de um modelo (matemático) do real com os quais podem ser postas em correspondência. Sem poder discorrer aqui sobre esta complexa matéria, creio que serei entendido dizendo apenas, por exemplo: que os nomes próprios podem ser concebidos como representando simples entidades do mundo de que falamos (o leitor, o seu gato, cão ou periquito, eu, a vizinha do lado, o Sol, ...); que os nomes comuns (tal como, pelo menos, certos adjectivos e os verbos intransitivos) podem, independentemente da flexão em número (que nem todas as línguas têm como o português), representar objectos matematicamente mais complexos, isto é, conjuntos dos tais simples indivíduos; que os verbos transitivos podem ser vistos como denotando relações binárias, isto é, conjuntos de pares de indivíduos - os pares formados pelos indivíduos que se namoram, ou por leitores e seus objectos de leitura, ou por construtores e aquilo que constroem, etc.; finalmente, que as frases assertivas denotam situações (a de estar um dia bonito, a de o Pedro ter casado com a Ana, a de o preço do petróleo estar a subir, etc.) e que, da verificação ou não dessas situações, depende ser atribuído às frases um valor de verdade, isto é, serem verdadeiras ou falsas.
Assumido o que ficou dito no parágrafo anterior, facilmente se percebe que, numa frase como o Pedro e quem tu sabes acabam de entrar na sala (da TLEBS-2), o sujeito composto o Pedro e quem tu sabes é uma expressão que representa duas pessoas, não uma pessoa e uma situação, pelo que a sequência quem tu sabes, substituível por a pessoa que tu sabes, é uma expressão nominal e não oracional. Apesar desta evidência, comprovável por numerosos testes, a TLEBS-2 mantém a análise errada de o Pedro e quem tu sabes como coordenação de um grupo nominal e de uma oração. É absurdo, contribui para que um aluno de Português pense mal, mas é isto que se quer continuar a impor como verdade.
O défice de análise semântica acabado de ilustrar, que deforma e trunca a visão da linguagem e impede um discurso gramatical coerente e cientificamente válido, repercute-se ao longo de toda a TLEBS-2 em numerosas definições (ou exemplos anexos), nomeadamente dos seguintes termos: «artigo»; «artigo definido»; «artigo indefinido»; «determinante»; «determinante indefinido»; «determinante possessivo»; «quantificador»; «quantificador existencial»; «oração subordinada adjectiva relativa» - neste caso, trata-se dos exemplos de «antecedente» contidos na entrada, aliás inconsistentes com a definição dada em nota; «oração coordenada conclusiva»; «advérbio de afirmação»; «advérbio de negação»; «oração subordinada substantiva relativa»; «oração coordenada copulativa»; «genericidade»; «tempo». Em parte ou no seu todo, os conteúdos em causa carecem de validação científica, dado não existir, quanto sei, qualquer teoria semântica bem fundada lógica e matematicamente que os sancione.
Para que o leitor possa avaliar pelo menos a ingenuidade de algumas das definições acabadas de referir, dou dois exemplos: «oração coordenada copulativa» - «oração coordenada a uma ou mais orações, cujo valor de verdade é idêntico ao da(s) oração(ões) sic com que se combina» (o que permite deduzir que, para a TLEBS-2, a frase a Terra é redonda e Portugal é o país mais rico do mundo é excluída pela gramática, dado a primeira oração ser verdadeira e a segunda falsa); «quantificador existencial» - «quantificador utilizado para asserir a existência do nome com que se combina» (leia-se bem: «a existência do nome»).
Advérbios ou a substituição do caos pelo caos
No que respeita à difícil questão dos advérbios, reitero a opinião de que o conhecimento sobre a matéria não está amadurecido e de que as TLEBS apenas substituíram uma tipologia caótica por outra que não o é menos, se não for mais. Vejamos sumariamente porquê. Em primeiro lugar, a tipologia da TLEBS-2 (que altera radicalmente a da TLEBS-1, dando a imagem de que em linguística tudo se muda com a maior das facilidades) cria uma classe talvez ainda mais híbrida do que a tradicional (inclui, p. ex., sinceramente, designadamente, consequentemente, até, apenas, não e contudo), que só pode ser definida morfologicamente, pela invariabilidade. Agravando a arrumação clássica, as TLEBS vieram deslocar para o baldio dos advérbios expressões que estavam pacificamente noutros lugares, como é o caso da antiga conjunção coordenativa contudo, sem que se veja na mudança qualquer vantagem conceptual (note-se que, contudo, surge, a par de designadamente, numa subclasse de advérbios conectivos, cuja caracterização semântica, ou mesmo sintáctica, é impossível).
Em segundo lugar, parece muito pouco avisada a criação das subclasses sintácticas (erradamente ditas semânticas) dos advérbios «de frase», «de predicado» e «conectivos». De facto, não se vê o ganho de associar indistintamente à frase o que é do plano discursivo e predica sobre o acto de fala (como honestamente) e o que predica sobre a proposição (como provavelmente), ou de colocar sempre o tempo na dependência do grupo verbal, quando tal é inadequado no plano semântico.
Finalmente, pergunto ainda que valor analítico e interpretativo pode ter a etiqueta «modificador» quando aplicada, por exemplo, aos putativos «advérbios» até na frase vi até aqueles filmes (onde seria modificador do grupo nominal aqueles filmes), ou a exclusivamente na frase a Joana deu presentes exclusivamente aos seus amigos (onde seria modificador do grupo preposicional aos seus amigos). É óbvio que os advérbios são tratados com uma total obcecação sintacticista, que em nada ajuda à melhor compreensão da língua. Perante tal panorama, o mínimo que se pode exigir é que não se mexa naquilo que não estava pior do que iria ficar com as alterações pretendidas.
A matemática maltratada
As línguas naturais e a matemática têm ligações profundas, não só porque o sistema gramatical se apoia numa infra-estrutura matemática, mas também porque certos subdomínios das línguas são correlatos de objectos daquela disciplina (dos números, por exemplo), tudo a exigir conhecimentos especializados e rigor no seu uso, quando se constrói uma gramática de bases científicas, como tem de ser a que se destina ao ensino. Ora, na TLEBS-2, quando bem analisadas, encontramos definições incorrectas do ponto de vista matemático, por exemplo as de «nome contável» e de «nome não-contável», de «numeral fraccionário» - que combina incorrecções linguísticas e matemáticas - e de «oração subordinada adjectiva relativa restritiva». Ainda há dias, em Lisboa, George Steiner falou de «iliteracia matemática». Seria muita pena que a TLEBS-2 servisse para a ilustrar.
Da gramática para a política
Da acção da actual ministra da Educação, algo ficará para a História: do que é bom, decerto o combate ao abandono escolar, com relevo para a indispensável extensão do sistema de vias profissionalizantes; entre o que é mau, seguramente a TLEBS, se a governante não souber aproveitar o tempo de que ainda dispõe para remediar erros anteriores. Tenho para mim que foram quatro os erros principais da ministra neste campo: (1) ter sancionado em 2005 a aplicação da TLEBS, herança de Governos anteriores, com mera alteração de calendários; (2) aparentemente, não se ter apercebido de que a questão das deficiências científicas da TLEBS lhe punha nas mãos uma matéria de primeira grandeza - a das relações estáveis de colaboração entre Ciência e Educação -, de que valeria a pena ocupar-se; (3) como corolário, ter achado que entregar o assunto à comunidade científica consistia em, privilegiando a inteligência individual sobre a «inteligência colectiva», pedir a revisão linguística a uma única pessoa, com o argumento (totalmente irrelevante) de se tratar do presidente de uma associação profissional; (4) não ter reconhecido o desacerto de criar uma cisão brutal entre o ensino do português europeu e o das outras variantes da língua. Ainda acredito que a ministra tenha um rasgo de lucidez e de coragem e corrija o rumo dos acontecimentos. Por uma razão simples: como está, a TLEBS continua inaceitável e o país merece melhor.
*in Expresso, de 24 de Novembro de 2007