Há situações em que a repetição exaustiva de uma mentira pode modificar os factos. Há outras em que tal não é possível, não apenas porque os factos são jurídica e politicamente sólidos, mas também porque a mentira é medíocre enquanto arma de arremesso. Criticar o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AOLP) é tão legítimo como é legítimo criticar qualquer tratado ou lei em vigor em Portugal. É saudável que os utentes da língua, sobretudo os linguistas, intervenham ativamente na “feitura” da língua, património vivo e mutante. Nesse sentido, é oportuno e útil que os interessados, sobretudo os qualificados na matéria, intervenham na elaboração do tão fundamental Vocabulário Comum previsto no Preâmbulo do Acordo (trabalhos esses, de resto, já em curso, no âmbito do Instituto Internacional da Língua Portuguesa — a sede própria para, nesse quadro, se melhorarem as opções menos felizes do Acordo Ortográfico).
Também é possível, e certamente legítimo em democracia, atacar uma ortografia e um acordo que a estabelece, defendendo outro acordo, outra ortografia, ou a pura e simples ausência de legislação sobre a língua, a nível nacional e internacional. Tudo é possível: da ciência à ignorância e à ficção política.
É, porém, patético que jornalistas e cronistas leiam mal informações factuais e vejam a próxima denúncia do AOLP pelo Brasil (!) na discussão de questões internas brasileiras relativas ao período de transição decidido para a integral aplicação da nova ortografia. Leem mal? Tresleem? Ou subvertem os factos? Se assim é, para quê?
Em março de 2008 o Acordo Ortográfico foi aprovado pelo Governo português e ratificado pelo Presidente da República, sendo estipulada uma moratória de seis anos para a sua integral aplicação. Este período de transição termina em 2015, ano em que o Acordo Ortográfico passa a vigorar em Portugal, na sua plenitude. No Brasil, esse período de transição termina em 2013. Pois bem: há no Brasil quem entenda que esse período deva ser prorrogado até 31 de dezembro de 2015. Um tradicional opositor brasileiro do AOLP, o senador Cyro Miranda, dá como garantida essa prorrogação, que não depende dele, nem do Senado.
Mesmo que o Brasil venha a prorrogar o período de transição1, tal facto em nada afetará a vigência do AOLP, que se encontra em vigor em todo o espaço lusófono, com exceção de Angola e Moçambique (onde o Conselho de Ministros já aprovou a proposta de ratificação). Jornais, editoras e até serviços públicos do Brasil aplicam já a nova ortografia. A substituição dos manuais escolares deve ficar completa até final de 2012. Mas o Brasil é um país enorme: modificar leis, hábitos e manuais demora tempo. No entanto, o tempo não corre a favor da denúncia, mas sim da plena aplicação do AOLP. Seria bom que os maus leitores de informações vindas do outro lado do Atlântico aprendessem a… ler. Afinal, a ortografia não afeta a compreensão. E a paixão anti-AOLP não justifica a mentira. Que é, neste caso, irrelevante.
Parafraseando Mark Twain, dir-se-á que a "notícia" da morte brasileira do Acordo Ortográfico é manifestamente exagerada.
1 Posteriormente à inserção deste texto, veio a confirmação do adiamento, por mais dois anos, da obrigatoriedade da adoção integral do Acordo Ortográfico, no Brasil. Cf. Acordo Ortográfico: Brasil prolonga período de transição por mais dois anos