Das declarações prestadas ultimamente a propósito do Acordo Ortográfico que por aí se discute, nenhuma terá sido tão clara como a que foi proferida (numa óptica favorável) pelo embaixador Seixas da Costa, em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença. Disse ele: "Temos de olhar para a CPLP como uma comunidade relativamente atípica porque é a única comunidade linguística em que a potência mais importante não é a antiga potência colonial." Ou seja, o acordo é sobretudo um instrumento político e não resulta de nenhuma necessidade linguística. Isso mesmo se entendeu do debate no mais recente Prós & Contras da RTP1, onde se repetiram, de forma aliás fastidiosa, os argumentos do costume: que as crianças, coitadas, têm dificuldade em aprender o português tal como se apresenta na sua vertente europeia e por isso faz sentido o acordo; ou que os idosos vão ver-se aflitos para entender tal caos linguístico e por isso ele deve ser recusado. É inútil usar tais argumentos, porque é a CPLP que se discute. Quem nela pesa, caso do Brasil; e quem nela quer fingir que pesa, caso de Portugal. Os comunicados oficiais conjuntos, na tal língua "unificada", são uma quimera. Por mais que se tirem consoantes, falaremos de desporto ou de esporte? De equipa ou de equipe? De bilheteira ou de bilheteria? De metro ou de metrô? De autocarro ou de ônibus? De comboio, trem ou trem-bala?
Convém recordar que, já no início do actual milénio, foram editados dois dicionários monumentais: o da Academia das Ciências de Lisboa e o Houaiss, este com edições no Brasil (seu criador) e em Portugal. Ambos com cerca de 3800 páginas e com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian (é neles, aliás, que se consagra já o aportuguesamento de alguns estrangeirismos, passando a escrever-se dossiê, robô, lóbi, etc.). Um novo acordo obrigaria a reeditá-los, naturalmente. Mas valeria a pena, em nome da tal língua "unida" de que se fala? Basta ler, na edição portuguesa do Dicionário Houaiss, o mais completo de entre eles, o texto introdutório assinado por Malaca Casteleiro, um dos paladinos do Acordo Ortográfico em curso, para concluir que não. O que continuará diferente será imenso; o que passará a ser igual, uma curta parcela; e o que era igual mas mudará nas novas regras ("recepção", por exemplo), irá criar novas diferenças.
As "duas ou três línguas com dimensão efectiva ou tendencialmente global" a que Carlos Reis se referiu, por exemplo, quando defendeu o acordo no Parlamento são, curiosamente, as que maior número de variantes apresentam naquele que é o mais usado dicionário do mundo, o que integra o processador de texto Word, instalado em biliões de computadores. Ali, pode ver-se que o espanhol, por exemplo, tem nada menos do que 20 variantes (da Argentina à Venezuela, passando por duas só para o espanhol europeu: a variante moderna e a variante tradicional); o inglês tem 18 (da Austrália ao Zimbabwe, passando obviamente pelo inglês usado no Reino Unido e nos EUA); o francês tem 15 (da Bélgica às Índias Ocidentais, passando pelo Mali e pelo Mónaco); o árabe tem 16 variantes registadas. E mesmo línguas com menor difusão em países que não o da sua origem mostram-se mais assumidamente plurais: o alemão e o chinês têm cinco variantes, o sérvio tem quatro. E o português, em lugar de seguir a tendência das línguas mais faladas no Globo, aceitando a sua multiplicidade, procura reduzir as duas únicas variantes que ali tem (Portugal e Brasil, claro) a uma utópica língua "única". Em vez de, como lhe competia, tratar de consagrar nesse mesmo dicionário variantes de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e também Macau e Índia, em proporções a definir pelos linguistas.
O Acordo Ortográfico, porém, marcha em sentido contrário. A "unidade" que ora se apresenta em nome da CPLP, não da língua, tornará o português ainda mais distante das línguas com maior difusão no Globo. Assumir as diferenças, valorizá-las, em lugar de esbatê-las sob pretextos ínvios, seria um muito melhor caminho. O futuro o dirá.
in Público do dia 16 de Abril de 2008