Iliteracia e outros monstros
Desde que deu uma entrevista ao «Público», publicada dia 6 de Janeiro, a anunciar que a generalização da TLEBS a todo o ensino básico e secundário tinha sido suspensa até se corrigirem as «deficiências», o director-geral da Inovação e Desenvolvimento Curricular, Luís Capucha, nunca mais teve descanso. A que se deve este fogo cerrado de críticas? Porque o assunto é polémico; mas também porque o seu discurso parece liberto de vigilância e faz emergir o não dito do Ministério da Educação, as forças cuja existência permanece secreta.
Um exemplo eloquente é esta passagem: «A totalidade dos programas de Português tem uma forte componente de ensino de textos da literatura portuguesa e este tem sido o caminho; se estivesse correcto, não teríamos problemas de literacia.» É certo que Luís Capucha diz noutro momento que «não podemos entender o ensino da língua (...) como matéria que se oponha ao ensino centrado na literatura, interpretação de textos ou gosto pela leitura». Mas se nem Deus tem o poder de fazer com que aquilo que aconteceu deixe de ter acontecido (segundo as discussões teológicas medievais sobre o poder divino), muito menos um director-geral pode apagar as palavras que efectivamente disse, não submetido a qualquer coacção. Finalmente, alguém do Ministério da Educação vem reconhecer que considera os textos literários um empecilho para o ensino da língua, o que explica cabalmente a história recente das alterações nos programas de Português.
Mas as declarações de Luís Capucha revelam algo mais: que o afastamento em relação aos textos literários é exigida para o cumprimento da missão que tem o nome de «literacia». A «literacia» é o significante-mestre no Ministério da Educação. Supostamente mensurável, ela tornou-se um puro instrumento de terror, destinado a reduzir ao silêncio todas as oposições, sob a forma de um tópico retórico que um director-geral da Inovação e Desenvolvimento Curricular aprendeu a utilizar como um mandamento: «...se estivesse correcto não teríamos problemas da literacia». Este raciocínio, como é fácil perceber, comporta esta perversa possibilidade lógica que é, aliás, mais fácil de demonstrar: se estivesse correcta esta perspectiva que coloca no centro da sua estratégia (eis outro significante-mestre da pedagogia) a aquisição da literacia não teríamos tantos problemas de iliteracia.
Esta obsessão com o objectivo mínimo da literacia significa que o sistema de ensino abandonou a referência a uma literacia clássica, que implica a aquisição de saberes e capacidades para utilizar linguagens que asseguram a cidadania e o necessário sentido crítico. Os textos literários tornaram-se um empecilho porque o objectivo que consiste na aquisição da literacia significa, como se pode ver pelos programas e pelos manuais, que a língua materna passou a ser ensinada como uma língua estrangeira. Daí a repetitiva ocorrência das palavras «instrumento» e «ferramentas» no discurso de Luís Capucha. Tal como no início à aprendizagem de uma língua estrangeira qualquer texto tem uma mera função instrumental - e não serve senão como instrumento porque o aluno ainda não tem competência da língua para passar a outro nível de elaboração - também no entendimento deste director-geral da Inovação, «os textos literários são instrumentos óptimos para ensinar a estrutura da língua». Repare-se na ingenuidade: ele diz isto para provar que não quer colocar o ensino da literatura e o ensino da língua como coisas opostas.
Sabemos agora qual a tarefa de um director-geral do Ministério da Educação: a de vendedor de ilusões transcendentais.
in "Expresso", 20 de Janeiro de 2007