DÚVIDAS

ARTIGOS

O nosso idioma // Discurso político

"Passificação"?!

Um erro intencional para falar de política e de história da língua

No seu artigo incluído no Público de 3 de novembro, o pol´tico português Francisco Louçã recorre à grafia "passificação", com dois s – um erro deliberado. Não se trata, portanto, de ignorância ortográfica, mas de um trocadilho político: ao substituir o ç por ss, Louçã faz uma alusão direta a outro político, Pedro Passos Coelho, sugerindo que a esquerda portuguesa anda domesticada ou acomodada – "passificada", por assim dizer. O efeito é irónico e crítico.

Este tipo de jogo linguístico não é novo na política, e aqui ganha uma dimensão especial, porque a palavra inventada constitui uma crítica ao PS e à sua aproximação ao centro-direita. Mas também convida a uma reflexão sobre a língua portuguesa.

Aproveitando o "erro", vale então recordar a distinção entre passo, o movimento do pé, e paço, o edifício habitado por reis ou senhores. A distinção entre estas palavras conserva-se na ortografia, mas também na pronúncia de falantes do norte interior. Hoje, para a maioria dos falantes, as duas palavras são homófonas – passo e paço soam igual , uma homofonia que, contudo, é recente ou não foi sempre verdadeira em todo o território.

Em várias zonas do Norte interior, conservava-se uma diferença clara na pronúncia dos sons representados por ss e por ç. O ss de passo correspondia a uma fricativa apical, produzida com a ponta da língua – o chamado s de Viseu, quase chiado. Já o ç de paço era uma sibilante pré-dorsodent, nada chiada, que é precisamente a que hoje caracteriza a pronúncia-padrão do português europeu.

Com o tempo, essa distinção fonética foi sendo neutralizada, e pares como passo/paço, asso/aço, isso/iço tornaram-se homófonos. A ortografia, porém, manteve a diferença, lembrando-nos que há vários grafemas que documentam toda uma história fonética e etimológica, além de permitirem distinguir significados que a fala já não separa. A escrita do português é assim também etimológica, e não estritamente fonética ou fonológica.

O “erro” de Louçã é, afinal, tudo menos um erro: é um gesto político e linguístico, a que se associa uma intenção de denúncia ideológica, ao mesmo tempo que propõe um jogo retórico com as subtilezas do nosso idioma.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa