Os incêndios florestais de proporções gigantescas, infelizmente tónica dominante da atualidade dos meses de verão em Portugal, voltaram às notícias e comentários da comunicação social nas últimas semanas. Na revista Sábado (edição impressa em 27/08/2025), os fogos também deram o mote ao editorial, que começa com uma gralha, pois, para o segundo período ter valor condicional e estar correto, não se deveria ler «se parece com pato...», mas, sim, «se se parece com um pato...». Ou seja, falta um se.
Na verdade, engana-se quem eventualmente pense que a repetição da forma se é errónea. Já nos primeiros anos do Ciberdúvidas, em 1999, o saudoso gramático José Neves Henriques (1916-2008), que era membro da Sociedade da Língua Portuguesa (a qual cessou atividade em 2010), assinalava numa resposta que, numa oração como «se se verificar um atraso...», a sequência «se se» não estava errada e era mesmo obrigatória.
Poucos anos depois, em 2003, a consultora Edite Prada aprofundava a análise deste caso de «dois se seguidos», com uma explicação que é praticamente intuitiva. Trata-se de duas palavras diferentes: o primeiro se é uma conjunção subordinativa, enquanto o segundo se é um pronome pessoal. Sabendo que as conjunções subordinativas atraem os pronomes pessoais para uma posição pré-verbal, compreende-se que o certo seja «se se compara com um pato», e não «se compara-se com um pato». Voltando ao caso de «se se verificar algum atraso», citemos José Neves Henriques: «Se colocarmos "um atraso" entre as duas palavras se, diremos naturalmente: "Se um atraso se verificar...», e não: "Se um atraso verificar-se..."»*
Este uso tampouco escapou ao gramático brasileiro Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998), no Dicionário de Questões Vernáculas: «Se se... – Não devemos confundir se conjunção com se pronome. Em "se se pretender isso..." o primeiro se é conjunção condicional, o segundo pronome apassivador.»
Cuidado, pois, com a sequência «se se», que não deve reduzir-se a um único se. Como se diz no texto em causa, o que parece um pato pode muito bem ser um pato; não obstante, vale sempre a pena lembrar que as aparências também iludem. No caso de «se se», não falha a gramática, porque se repetem formas mas não as palavras, que são duas, com significados e funções muito diferentes.
* Agradeço ao consultor Paulo J. S. Barata a chamada de atenção para este caso.
** Ainda de José Neves Henriques, leia-se «Se se for jantar fora...» (02/04/2002).