« (...) A solução verdadeiramente humanista e democrática seria dar a todos acesso a educação de qualidade e não rebaixar o nível da norma-padrão ao linguajar de pessoas escolarizadas mas não verdadeiramente letradas. (...)»
Que as línguas evoluem já se tornou um truísmo. Estamos tão acostumados à ideia de que cada geração de falantes se expressa de modo diferente e de que novos termos e construções surgem a todo momento que prestamos mais atenção à mudança do que à conservação. E, no entanto, se a tendência natural da língua é mudar, o fato verdadeiramente admirável não é que haja inovações o tempo todo, mas que exista certa estabilidade no sistema, de modo que conseguimos nos comunicar com eficiência desde que aprendemos a falar até o fim da vida.
Embora muitos pensem que exista uma força impulsionando a evolução, na verdade, a mudança se dá por inércia: é necessário uma força para deter ou retardar a evolução. Afinal, abandonada à própria sorte, toda língua muda rápida e inexoravelmente, já que todo falante, mesmo involuntariamente, contribui para essa transformação.
O fator que mais obstrui a mudança é a escrita: línguas com escrita formal são mais conservadoras que as ágrafas. A escrita socialmente partilhada precisa que haja uniformidade espacial e temporal. E para que exista escrita formal, tem de haver educação. Portanto, a escola é a grande força a se opor à evolução da gramática (o léxico muda mais pacificamente com o próprio progresso social). A língua falada na România, os territórios europeus outrora dominados por Roma, mudou mais do século V ao X de nossa era do que nos cinco séculos anteriores ou nos dez seguintes. Essa rápida mutação se deveu ao desaparecimento da educação formal durante a Alta Idade Média.
Todas as línguas literárias, ou de cultura, admitem um nível de linguagem formal e um informal, além de um que podemos chamar de “iletrado”. Em português, numa simplificação grosseira, esses três níveis podem ser representados pelas construções «nós vamos», “a gente vai” e “nós vai” (ou “a gente vamos”). Entre os dois primeiros níveis e o terceiro há uma barreira: um falante escolarizado alterna seu registro entre formal e informal conforme o interlocutor e a situação de comunicação em que se encontre (entrevista de emprego, palestra, bate-papo entre amigos). Mas nunca se expressa como as pessoas iletradas, a não ser de brincadeira. Já estas acabam prisioneiras de seu nível de linguagem pela falta de escolaridade.
É notável que em países como os escandinavos a distância entre a língua falada e a escrita é menor do que em outros, como o Brasil. Mas, para discutir esse ponto, é preciso primeiro desfazer um equívoco frequente entre nível formal e modalidade escrita, assim como entre nível informal e modalidade falada. Muitos acreditam que a norma padrão existe só para a escrita, e a expressão oral está livre de obedecer a ela dada a sua natural informalidade.
Na verdade, há formalidade e informalidade tanto na escrita quanto na fala: podemos escrever a um amigo em linguagem coloquial, como se estivéssemos falando com ele, assim como se deve usar o português padrão numa conferência ou aula magna. É bem verdade que a maioria dos textos escritos é formal e a dos atos de fala é informal, o que gera a confusão entre registro e modalidade.
Pessoas bem escolarizadas tendem a se expressar de maneira mais próxima ao padrão mesmo em situações informais. Ou seja, não se passa pelo processo de escolarização impunemente! Portanto, se em certos países a língua falada está bem próxima da escrita, é certamente porque, neles, a qualidade e a abrangência da educação são muito altas.
A Suécia, por exemplo, erradicou o analfabetismo ainda em fins do século XVIII; atualmente é uma das nações com maior índice de leitura de livros ‘per capita’ ao ano. Isso se reflete obviamente em seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), um dos mais altos do mundo.
Povos como o sueco ou o alemão têm a fama de escreverem como se fala; a realidade é que eles falam como se escreve, ou seja, a forte ênfase em escrita e leitura no ensino básico faz com que os falantes, mesmo em ambientes informais, prefiram «nós vamos» a «a gente vai».
No caso do português brasileiro, a distância entre a língua dos contratos e ofícios e a dos botequins e campinhos de futebol é abismal – em Portugal, essa distância é um pouco menor. Isso se dá em parte porque nosso padrão é excessivamente conservador (jornais e revistas de boa qualidade tendem a um meio-termo, elegante e correto, mas simples e direto), mas também porque nossa escola é fraca; fosse mais forte, mais gente usaria «nós vamos» em lugar de «a gente vai», e mais pessoas diriam «a gente vai» em vez de «a gente vamos».
Some-se a isso o fato de que, para muitos estudantes, em especial na escola pública, a figura de prestígio e modelo de comportamento e linguagem não é o professor, humilhado em seu baixo salário, mas o traficante, temido e respeitado por seu poder de fogo. Nesse sentido, arriscaria dizer que, em matéria de fala, a população de baixo letramento – que, infelizmente, inclui até universitários – não se encontra em situação tão diferente da experimentada pelos europeus da Idade das Trevas.
Neste momento em que certos colegas linguistas, movidos muito mais por sua ideologia política do que pelo respeito ao método científico, afirmam que o português brasileiro já é uma língua distinta do português europeu e, com base nisso, propõem a adoção de uma norma-padrão que reflita os usos gramaticais brasileiros, notadamente os da língua falada, é preciso ter em mente que o português falado no Brasil pelas pessoas escolarizadas já foi mais próximo da norma-padrão numa época em que o ensino em geral e o de língua portuguesa em particular eram muito mais fortes do que hoje em dia. Portanto, a solução verdadeiramente humanista e democrática seria dar a todos acesso a educação de qualidade e não rebaixar o nível da norma-padrão ao linguajar de pessoas escolarizadas mas não verdadeiramente letradas. Esse tipo de solução simplista e demagógica resvala na barbárie.
Publicação do linguista brasileiro Aldo Bizzocchde 22/04/2024 no mural Língua e Tradição , no Facebook.