« (...) Falando em vocabulário caído em desgraça, livramo-nos da insuperável superação para cair nas garras da resiliência. (...)»
Não sei que fim levaram as provas contundentes. As provas cabais. As provas definitivas.
De um tempo pra cá – talvez pela popularização do fitness, do whey e dos anabolizantes – todas as provas são robustas.
Provas parrudas, fornidas, musculosas são questão de tempo. Assim como provas hercúleas, espadaúdas, bombadas.
É bom que isso aconteça porque nos libera, temporariamente, de um clichê – nem que seja substituindo-o por outro.
Suponho que nenhum juiz aguentasse mais os advogados falando em provas contundentes – por que não cortantes, perfurantes, obtundentes? Ou cabais – cadê as provas incisivas, peremptórias, taxativas? R.I.P. provas cabais e contundentes; welcome, provas robustas.
Hoje não há tese, artigo ou ensaio da área de Humanas que não fale em saberes.
Culpa, talvez, do Caetano, que inventou de falar do “quereres”.
Sim, na canção a parada era outra: o verbo substantivado (no plural) por meio de um determinante (no singular) – mas que também poderia ser (e acho que é) o infinitivo flexionado na segunda pessoa (para ter certeza, só perguntando ao autor, e ele está de férias).
«O quereres e o estares» causa aquela estranheza boa, a sensação de penetrar num estado superiormente interessante da linguagem. Já os saberes... esses são só uma forma diferentona de falar dos conhecimentos, das técnicas., das práticas, do norráu.
Não há novidade aí: já tínhamos os deveres, os poderes, os afazeres. Só que nenhum desses virou praga. E dá-lhe «os saberes dos povos da floresta», «as conexões dos saberes dos jovens de origem popular», «os saberes tradicionais como instrumento de transformação».
Os saberes são uma prova robusta de como certas palavras podem se tornar potentes.
Potente é outra que não me deixa mentir.
Até bem pouco tempo atrás, potente era a caixa de som, o motor do carro e pouca (bem pouca) coisa mais. Hoje as mulheres não são mais poderosas ou empoderadas: são potentes. As palavras não são fortes ou duras: são potentes. O pensamento é potente. A obra de arte é potente. Uma onipotência tomou conta do vocabulário, subjugando o que poderia ser pujante, possante, vigoroso, importante, respeitado.
Falando em vocabulário caído em desgraça, livramo-nos da insuperável superação para cair nas garras da resiliência. Adeus adaptação, recuperação, reabilitação, firmeza, resistência, garra, plasticidade, flexibilidade, regeneração. Nenhuma é tão resiliente quanto resiliência.
Queria entender por que certas palavras têm o privilégio (privilégio é uma delas) de conseguir a empatia (empatia é outra) do mundo acadêmico, da mídia, dos formadores de opinião na ressignificação (quem ainda aguenta ressignificação?) lexical.
É preciso desconstruir essa narrativa (olhaí mais duas) de uma forma disruptiva (mais outra) e você leitor, é um player (“player”!) diferenciado (diferenciado!) nesta jornada (jornada não podia ficar de fora desta lista). Bora desapegar (e como é difícil desapegar do desapego) dos clichês.
É sobre isso. Gratidão!
Apontamento do arquiteto e escritor brasileiro Eduardo Affonso, transcrito, com a devida vénia, doo mural Língua e Tradição, com a data de 8 de janeiro de 2024.