O Burquina Fasso e a rejeição da oficialidade do francês - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Início Outros Diversidades Artigo
O Burquina Fasso e a rejeição da oficialidade do francês
O Burquina Fasso e a rejeição da oficialidade do francês
Um país multilingue com história atribulada

 « (...) A história dos 63 anos de independência do BF tem sido bastante atribulada, recheada de golpes de Estado e predomínio de regimes autoritários. (...)»

 

À semelhança do Mali, seu vizinho, o Burquina Fasso (Burkina Faso, em francês) deixou de ser, no início deste mês, um país de língua oficial francesa. O Burquina Fasso (BF) situa-se na região do Sael, que se estende entre o deserto do Sara e a Guiné, limitado a oeste e norte pelo Mali e, no sentido horário, pelo Níger, Benim, TogoGana e Costa do Marfim. Estima-se que tenha uma população de mais 21,5 milhões de habitantes. Tornou-se independente em 1960, assumindo o nome de República do Alto Volta até 1984 (por conter as nascentes dos três rios que desaguam no rio Volta, cujo nome parece provir do português). Em 1984, durante a presidência de Thomas Sankara, militar, revolucionário marxista e pan-africanista (assassinado em 1987 durante o golpe de estado liderado por Blaise Campaoré), o país assumiu o seu nome atual, composto pelas palavras burkina, proveniente da língua more, que significa «integridade, honra», e faso, proveniente da língua diúla ou jula, que significa «terra, pátria».

Não se encontra muita informação sobre a situação linguística do BF, embora em alguns trabalhos se refira a convivência pacífica entre as várias etnias e línguas, assim como a presença de ensino bilingue no país. De acordo com The Ethonologue, o BF conta com 66 línguas autóctones vivas (nove em risco de extinção) e uma língua gestual própria. O more, originário do BF, Mali e Togo é a mais falada, por cerca de 48% da população, lingua franca em todo o país. O diúla é originário do BF e da Costa do Marfim e será falada por c. 9% da população. O fula (em francês, peul), cujo estatuto é reconhecido em cinco países africanos (incluindo a Guiné-Bissau), é falado sobretudo no nordeste do país. As três línguas pertencem à família Níger-Congo e constituem as línguas nacionais do BF.

A história dos 63 anos de independência do BF tem sido bastante atribulada, recheada de golpes de Estado e predomínio de regimes autoritários. O Relatório de 2013 da Human Rights Watch refere que a situação relativa aos direitos humanos se deteriorou muito em 2022, devido aos ataques mortíferos de grupos armados islamistas contra civis, a violações cometidas por forças governamentais e milícias no decorrer de operações antiterrorismo e à instabilidade política. Os Repórteres sem Fronteiras denunciam também uma degradação profunda da liberdade de imprensa. O BF tem sofrido, desde 2015, ataques de grupos jiadistas ligados ao Estado Islâmico e à Al-Qaeda, causando milhares de mortos entre civis e militares e a deslocação da população para o interior do país. Em 2022, ocorreram dois golpes de estado militares, um a 24 de janeiro e outro a 10 de setembro; a 4 de outubro, Ibrahim Traoré tornou-se o «presidente da transição do Burquina Fasso», «transição"»prevista para durar três anos. A Constituição do BF, que instaurou a IV República, fora referendada em junho de 1991.

A 6 de dezembro, o presidente do BF anunciou uma alteração constitucional, segundo a qual o francês, língua oficial, do estado e de ensino até agora, é substituído pelas línguas nacionais e relegado para a função de «língua de trabalho». Esta alteração constitucional prevê, ainda, a instituição de mecanismos tradicionais e alternativos para resolução de referendos, o reforço da Agência Nacional de Informação e a abolição do Supremo Tribunal de Justiça. Por enquanto, resta seguir os acontecimentos e verificar qual o país e qual a língua colonial que se seguem.

Fonte

Artigo da  linguista e professora universitária porutguesa Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, publicado no Diário de Notícias em 18 de dezembro de 2023.

Sobre a autora

Margarita Correia, professora  auxiliar da Faculdade de Letras de Lisboa e investigadora do ILTEC-CELGA. Coordenadora do Portal da Língua Portuguesa. Entre outras obras, publicou Os Dicionários Portugueses (Lisboa, Caminho, 2009) e, em coautoria, Inovação Lexical em Português (Lisboa, Colibri, 2005) e Neologia do Português (São Paulo, 2010). Mais informação aqui. Presidente do Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) desde 10 de maio de 2018. Ver, ainda: Entrevista com Margarita Correia, na edição número 42 (agosto de 2022) da revista digital brasileira Caderno Seminal.