« (...) Que a ortografia é secundária na comunicação, temos uma prova evidente na presente boa transmissão da mensagem entre falantes que adotam as grafias diferentes do AO90 e da norma de 1945. (...) »
1. O passado
Os vernaculistas do passado indicavam que a língua devia ter as seguintes qualidades:
a) Pureza (sem estrangeirismos, anacronismos, purismos excessivos).
b) Correção (obediência às regras gramaticais, nomeadamente as ortográficas).
c) Precisão concisa (sem redundâncias, adjetivação excessiva, períodos longos, prolixidade).
d) Clareza (sem ambiguidades, a mensagem bem esclarecida, as palavras escolhidas com a propriedade adequada, na suprema arte de António Vieira).
e) Harmonia (sem: repetição de termos, tendorreias, eufonias, abuso de figuras de estilo; nem abuso da beleza rítmica, também Vieira, mas hoje ridicularizada).
f) Unidade (de ação, de lugar, de tempo, sem excesso de analepses que confundam).
g) Ordem (um início com os temas e personagens, um desenvolvimento com causas, consequências e clímax, uma conclusão com ou sem uma proposta de ação, meditação final expressa ou implícita).
Em resumo, as exigências para uma escrita com qualidade eram tantas que efetivamente só os grandes conhecedores das minúcias da língua se consideravam escritores de qualidade. Foi o tempo de o Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem, de Rodrigo de Sá Nogueira, das Charlas Linguísticas, de Raul Machado, do monumental Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves... E, porque não? dos trabalhos meus no Prontuário Erros Corrigidos de Português, com 80 páginas de erros corrigidos, densas em letra 8, que fez seis edições.
2. Os novos tempos
Ora, no meu último trabalho linguístico e no tópico sobre a qualidade na língua, tenho só sete páginas nas quais aponto os erros que se devem evitar, e particularmente quando grosseiros. Refiro que passou o tempo da condenação taxativa dos galicismos, ou o tempo mais próximo contra os anglicismos, pois muitos desses termos entraram na língua (abajur, bidé, cachê, manicure, etc.; e blecaute, dérbi, gangue, náilon, recorde, etc.). Entraram também termos espúrios (óvni, laser, sida, etc.) ou até adquirindo sentido diferente com o uso (como despoletar com o sentido inverso).
Concluo, embora os eruditos da língua devam ser ouvidos («Um rio sem margens desaparece», no lema de Ciberdúvidas, que defendi durante muito tempo), que o verdadeiro dono da língua é sempre o falante. É este que a usa e tem o direito de a adaptar na comunicação.
3. A qualidade na ortografia para o novos tempos
Se agruparmos, tendo o mesmo objetivo, as alíneas do tópico 1., verificamos que a pureza, a correção, a precisão concisa e a harmonia dizem respeito especificamente à gramática. Ora, vou dar um desgosto a muita gente, mas presentemente considero a gramática (e nela também a ortografia) uma mera convenção; que deverá ser o mais geral possível, sim, entre os falantes duma dada comunidade, mas também o mais simples possível. Os tópicos a), b), c) e e), acabados de referir, não são fundamentais para uma mensagem de qualidade (objetiva, que atinja o seu propósito) nessa comunidade, desde que na sua escrita seja clara, com unidade de ação, ordenada e respeite a estrutura base tradicional da língua para que não haja grande discrepância na comunicação entre gerações.
Algumas vezes a gramática até prejudica a mensagem; como no exemplo da frase: Uma parte dos alunos adoeceu, gramaticalmente correta, mas menos expressiva na mensagem que na forma: Uma parte dos alunos adoeceram. Pode acontecer, mesmo, que uma incoerência lógico-conceptual seja irrelevante na mensagem; como no exemplo, da frase: O barco no rio que se afundou, pois a mensagem óbvia é que o que se afunda é o barco.
Os falantes, em todos os tempos, têm relegado as exigências ortográficas para segundo plano. Gonçalves Viana ignorou muitas das incursões no latim e no grego que eram moda até aí; a norma de 1945 continuou a simplificar. O AO90 também, mas, neste caso, exagerou nas alterações, ignorando a história das palavras, e, desprezando a índole da língua e a unificação, dividiu as gerações e as comunidades em excesso, quando o objetivo era unir.
Que a ortografia é secundária na comunicação, temos uma prova evidente na presente boa transmissão da mensagem entre falantes que adotam as grafias diferentes do AO90 e da norma de 1945.1
4. A qualidade na mensagem, sempre
Se considerarmos que nas obras ditas literárias (romance, novela, conto, lenda, poesia), se aceita que o mérito artístico-estilístico e até a ambiguidade na comunicação subliminar (fundo e forma) sejam importantes,já na escrita corrente (ensaio, carta, narrativa, discurso, notícia, relatório, guião) a qualidade da comunicação exige fundamentalmente qualidade na mensagem.
Um texto corrente falha se não consegue transmitir bem a mensagem pretendida, em consequência do mau domínio da palavra escrita.
É essa a pecha da iliteracia dos novos tempos, com desrespeito por:
● Clareza — Mensagens confusas, sem um sentido muito bem definido nas ideias expressas. Muitas vezes não fica evidente o que o emissor pretende exatamente no seu texto, introduzindo parênteses no discurso que baralham o receptor ou centrando-se em temas acessórios ou fora do contexto. Também é pecha o abuso da palavra muleta, por exemplo, o de `líder´ para todos os casos de alguém que representa um conjunto de pessoas; ora, um “animador” de uma comissão, meramente alguém que promove a ação, é diferente de um “comandante” de combatentes, este com poder de vida ou de morte...; má qualidade que deriva de deficiente domínio do rico léxico que a nossa língua tem e que permite a excelsa virtude da propriedade na escolha.
● Unidade — O receptor não consegue entender-se bem na ação, no lugar, no tempo dos eventos ou circunstâncias descritos pelo emissor.
● Ordem — A desordem nos conceitos e expressões que ocorrem no discurso deixa de transmitir eficazmente a mensagem pretendida, pois não se estabelecem devidamente as ligações causa e efeito, com as ideias e conclusões do emissor.
5. A nova formação escolar na língua
A formação geral dos jovens para os novos tempos deve abandonar a memorização do passado, substituindo-a por uma técnica prática de obter resultados pelo conhecimento onde encontrar as ferramentas úteis, e por um treino de obter soluções para os objetivos pretendidos.
Ora, da mesma maneira, a formação específica prática na língua deveria passar a centralizar-se na técnica (ciência e arte) de comunicar a mensagem com qualidade, considerando-se a qualidade gramatical (nomeadamente a ortografia) meramente uma ferramenta para esse objetivo fundamental. Ferramenta sem um valor sagrado, mas só um meio, tolerante, adaptável e adequado ao resultado da boa mensagem.
6. Sensatez
A esta centralização, da escrita na sua mensagem, pode também aplicar-se à arte literária. Por exemplo, há quem defenda o critério de que a clareza não deve ser respeitada na literatura e de que haja alguma ambiguidade, de forma a permitir que o leitor se projete no que lê, numa mensagem aberta pelo emissor. Critério este que, contudo, só consigo aceitar bem na poesia ou na prosa poética, pois o que pretendo, como escritor literário, é que os meus destinatários sintam mesmo as vivências das minhas personagens.
Centralização que, sublinhe-se também, não é um conselho para que se esqueça complemente a qualidade gramatical. Um laxismo excessivo, com muitos erros gramaticais e muitas gralhas, torna um texto repulsivo.
Então, para concluir, lembro: os correctores de texto informáticos, embora uma boa ajuda, nem sempre garantem a qualidade suficiente. O recurso ao útil revisor de texto, um especialista na qualidade gramatical e estilística, hoje menos valorizado, continua a ser uma ajuda insubstituível para os escritores cujo fluxo criativo tende a ignorar as minudências da forma e se enfadam depois com a perda de tempo na oficina da escrita. Ajuda que este texto teve, gentilmente, por Ana Castro Salgado, investigadora doutorada do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa.
1 Ou no seguinte texto que corre na Internet:
De aorcdo com uma peqsiusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as Lteras de uma plravaa etãso, a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia Lteras etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma bçguana ttaol, que vcoê anida pdoe ler sem pobrlmea. so é poqrue nós não lmeos cdaa Ltera isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo.