«Quem ouve desde pequeno dizer que «o comer» é um crime linguístico já está de dedo em riste: então, se temos a comida em cima da mesa, para quê pôr lá também o comer?»
Há quem fique arrepiado quando ouve alguém dizer «o comer». Só que arrepios não fazem erros.
Então não é erro? Claro que é! Pois, se comer é verbo, usá-lo como nome só mostra ignorância…
Só que não. Se olharmos com um pouquinho mais de atenção para a nossa língua, encontramos tantos verbos transformados em nomes que daria para criar um dicionário inteiro. Temos o saber (que não ocupa lugar), o olhar (que é tão lindo), o falar (daquela terra), o jantar (que está na mesa) – e por aí fora.
Quem ouve desde pequeno dizer que «o comer» é um crime linguístico já está de dedo em riste: então, se temos a comida em cima da mesa, para quê pôr lá também o comer? Ora, existe na língua uma coisa chamada «sinónimos». Há muitas e muitas palavras que têm significados muito parecidos. Tal não implica que uma delas esteja errada.
Basta pensar no par sabedoria e saber. Não querem dizer exactamente a mesma coisa – mas comida e comer também não.
Olhemos para o jantar: também tem o sinónimo «a janta» – a diferença, neste caso, é que foi o verbo transformado em nome que ganhou pergaminhos. A janta ficou sentada ao lado do comer.
Por isso, vamos lá parar com esse disparate de querer impedir os verbos de se transformarem em nomes. Ainda nenhum dos nossos bisavós tinha nascido e já os portugueses transformavam verbos em nomes (entre outras malfeitorias). Todos os escritores desta língua usaram verbos transformados em nomes, de Camões ao mais desconhecido dos escribas.
Aliás: todos nós usamos verbos transformados em nome! Mesmo os que tremem perante «o comer», declarando ódio aos verbos transformados em nomes, não se importam de dizer, na frase seguinte, que o jantar estava muito bom.
Nem sempre reparamos na língua que nos sai dos lábios e dizemos disparates desses, que no fundo servem apenas para dar uma falsa justificação gramatical a uma mera diferença de hábitos linguísticos. Sim, há famílias que não usam «o comer». Há outras que usam. Umas e outras têm certas ideias sobre as restantes. É o que acontece com muitas palavras em todas as línguas.
Enfim. Podemos não gostar da expressão. Podemos evitá-la. Podemos até não gostar de quem a usa (acho um absurdo, mas cada um tem as manias que quiser). O que não podemos é dizer que é um erro transformar um verbo num nome. Não é erro nenhum – e não saber isso mostra falta de atenção ao funcionamento da nossa língua.
Se sempre ouviu dizer que o comer está na mesa, coma descansado. Se sempre ouviu dizer que não deve usar «o comer» e não quer quebrar esse tabu, não use a palavra. Agora não acuse quem a usa de cair num erro de português. Se o fizer, o erro é seu.
Apontamento publicado no blogue Certas Palavras em 26 de julho de 2020 (mantém-se a ortografia de 1945, seguida no original).