1. A minha experiência na supervisão pedagógica dos estágios integrados a nível do ensino básico e do ensino secundário (e só nesse quadro as considerações que tecerei deverão ser entendidas) tem-me revelado a existência de problemas que, em última análise, se prendem com a fraca familiaridade que existe entre os estagiários e a gramática da língua materna. Na verdade, muitas vezes, observando aulas sobre gramática e/ou análise textual, tenho a impressão de que o português-objecto de estudo nada, ou muito pouco, tem a ver com o português com que comunicamos dia-a-dia ou em que, depois dos cinquenta minutos de aula, todos nos entendemos. O trabalho sobre a língua resume-se frequentemente à enunciação de definições e regras num discurso mais declarativo do que reflexivo, mais expositivo do que explicativo, reflexo da atitude distante e temerosa com que os professores em estágio lidam com a gramática.
Tendo como certo que o objectivo da formação inicial é o de promover e aprofundar aprendizagens, modificar atitudes, alterar comportamentos, fazendo com que "los profesores asuman todo su potencial como académicos y profesionales activos y reflexivos" (GIROUX, 1990: 177) perante um contexto profissional em que se inscrevem como agentes educativos, não me parece viável outro modelo de formação senão o reflexivo. Segundo este modelo, "A sala de aula constitui-se como o centro da reflexão e é pela análise conjunta dos fenómenos educativos neste contexto que se opera a formação" (AMARAL et alii 1996: 96-7).
Neste sentido, o olhar reflexivo do professor deve incidir sobre tudo o que compõe o acto educativo, ou seja, "o conteúdo que ensina, o contexto em que ensina, a sua competência pedagógico-didáctica, a legitimidade dos métodos que emprega, as finalidades do ensino da sua disciplina" (ALARCÃO, 1996: 180). Esta concepção dos professores como intelectuais, defendida por Giroux, deve vigorar desde a formação inicial onde "Hay que insistir en la idea de que los profesores deben ejercer activamente la responsabilidad de plantear cuestiones serias acerca de lo que ellos mismos ensefian, sobre la forma en que deben ensefiarlo y sobre los objetivos generales que persiguen" (GIROUX, 1990: 176).
Importa aqui focar sobretudo "o conteúdo que (o professor) ensina", pondo a descoberto as fragilidades que emergem do confronto com o acto de ensinar e colocando hipóteses de trabalho como contributos para a sua resolução.
2. Os episódios a seguir relatados foram colhidos da observação da prática na sala de aula e têm como fim exclusivo servirem de objecto de reflexão. A partir das dificuldades dos professores em formação inicial, espera-se poder dar alguns contributos para o desenho de um esquema de trabalho orientado para o desenvolvimento de competências como a sensibilidade e a consciencialização da língua que se usa e que se ensina.
Gostaria de notar que estes casos apresentam padrões de ocorrência elevados, o que lhes confere uma tipicidade justificativa do destaque que lhes é proporcionado. Esse olhar sobre a prática dos professores permitirá tirar conclusões acerca das suas atitudes face ao conhecimento da língua, ou seja, dos modos como procedem/agem em relação ao conhecimento, em geral, e à linguística, em especial, com particulares reflexos na sala de aula em áreas centrais como a análise de texto/discurso e o ensino da gramática, necessariamente articuladas, na concepção de um "ensino da língua materna como pedagogia dos discursos", como defende Joaquim Fonseca que alerta, de resto, para "a necessidade de explorar a articulação entre, de um lado, propriedades, instrumentos e mecanismos linguísticos e comunicativos operantes na estruturação e funcionamento dos discursos e, do outro lado, as condições de produção desses mesmos discursos. ( ... ) Por esta via, pretende-se, em suma, congregar o estudo das virtualidades do sistema da língua com a reflexão sobre o seu uso efectivo" (FONSECA, 1988-89: 72-73). Ora, um domínio debilitado do sistema e do funcionamento da língua põe seriamente em risco uma análise textual/discursiva que deveria articular "o que é dito com o modo como é dito".
Pelo facto de os conhecimentos linguísticos estarem na base de todo o trabalho na aula de língua materna, dar-se-á a este conjunto de reflexões um enfoque gramatical.
2.1. Um dos procedimentos a que, algumas vezes, se assiste é o da realização de aulas pensadas para ensinar as classes morfológicas das palavras, numa perspectiva tradicional de gramática, num trabalho inequivocamente orientado para a sua memorização fora de qualquer contexto de uso, indiferente aos valores semânticos.
A redução do tratamento de itens gramaticais a intrusões arbitrárias, pouco aprofundadas, numa fuga à verdadeira reflexão linguística contextualizada, no ensino básico, alia-se ainda o discurso do professor que, na maior parte das vezes, se caracteriza como sendo um discurso compacto, pré-definido, fechado sobre si mesmo através do qual se veiculam conceitos, definições e exemplos previamente determinados, quando é do consenso geral que só um discurso aberto, reflexivo, questionador e problematizante poderá fazer evoluir os alunos no sentido de um uso hábil, competente, autónomo da língua.
Sobre estas notas, um exemplo apenas. Depois de escrever no quadro que ""e" é uma conjunção coordenativa copulativa que une termos de idêntica função", o professor explica a definição à turma, a pedido de um dos seus alunos, nos seguintes termos: "Esta conjunção une palavras ou orações que têm a mesma função, porque há outras que ligam elementos que não têm a mesma função. Esta liga elementos com a mesma função". E a aula prossegue num outro sentido. Como se pode ver, o discurso tautológico do professor em estágio pedagógico não ajuda o aluno a compreender concretamente o funcionamento das construções de coordenação. Não seria difícil encontrar entre as explicações possíveis uma que referisse as construções de coordenação como "( ... ) aquelas que envolvem duas ou mais orações ou sintagmas de idêntica categoria sintáctica e em que nenhum deles é constituinte do outro. A associação entre os dois constituintes ligados pode exprimir-se ou por conectores ou por pausas" (MIRA MATEUS et al., 1989: 257).
Verifica-se, portanto, que a inabilidade do professor se revela a dois níveis. Num primeiro momento, o professor pretende explicar determinado conteúdo gramatical, limitando-se a veicular uma definição imprecisa/incorrecta. Num segundo momento, ao dar resposta a um pedido de clarificação de um aluno, o professor enreda-se num discurso circular e vazio de conteúdo. A apresentação maquinal de definições e regras quando é esperada uma explicação, as simplificações nem sempre necessariamente válidas, as reformulações circulares e pseudo-explicações de noções que se mantêm indefinidas e vagas para os alunos, exemplificadas na situação relatada, permite-nos concluir que o professor fez uma aquisição apressada dos conteúdos gramaticais a trabalhar na sala de aula, reflexo de um domínio débil da língua materna.
A mesma situação permite ainda uma nota crítica relativa ao modo como o ensino-aprendizagem se processa. Mais do que ensinar um conjunto de termos metalinguísticos, o professor deveria promover, junto dos seus alunos, uma prática de reflexão da língua, considerando que a aquisição de um saber explicativo ou metalinguístico cumpre a sua função ao "fazer conhecer bem aquilo que se sabe que existe" (FARIA, 1995: 10). A promoção de uma prática de reflexão, condição necessária para a aquisição e desenvolvimento de conhecimentos, capacidades e competências (linguísticas e comunicativas) do aluno enquanto falante consciente, é essencial no ensino da língua materna aos alunos do Ensino Básico. Convém não esquecer que os Programas de Língua Portuguesa do 3° ciclo do Ensino Básico (adiante, P.L.P.), no que ao tratamento do Funcionamento da Língua em aula diz respeito, apontam justamente nesse sentido (P.L.P., 1996: 48).
No entanto, essa prática reflexiva baseada em "estratégias pedagógicas orientadas para a resolução de problemas" para que o P.L.P. aponta nem sempre se verifica nas aulas observadas no contexto do estágio pedagógico, sendo mais frequentes situações como a que se procurará descrever no ponto seguinte.
2.2. É consensualmente aceite como prática pedagógica rentável a utilização do erro como tópico de reflexão para a consciencialização do funcionamento da língua por parte dos alunos; na verdade, ao ensinar a pensar sobre o erro, o professor, ao mesmo tempo que aumenta alguns conhecimentos, solidifica outros, mas sobretudo conduz os seus alunos para uma progressiva autonomização.
Os episódios que a seguir apresento, sendo da mesma natureza e de ocorrência também elevada, servem para ilustrar um procedimento, típico nas aulas do Ensino Básico, relativo à análise de segmentos descritivos, que se resume quase sempre à detecção da presença do imperfeito do indicativo e à quantificação dos adjectivos.
Exemplo 1 (sobre O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner)
P: «Para que servem os adjectivos? A: Para qualificar.»
P: «Muito bem. Para qualificar, neste caso, o Inverno. Vão agora sublinhar todos os adjectivos que encontram nessa descrição.»
AI: «"os rios gelam".»
A2: «"grinaldas ( ... ) que punham a flutuar no rio".»
A3: «"o vento de Outubro despia os arvoredos".»
P: «E isso são adjectivos?»
Exemplo 2 (sobre «A origem de Timor e o crocodilo»)
P: «Então, digam-me lá os adjectivos que encontraram no texto. AI: "A terra escaldava como ferro em brasa".»
A2: «"(O crocodilo) Rastejava a custo."»
P: «Isso não é um adjectivo, é um verbo.»
A2:: «Mas "escaldava" e "ferro em brasa" dão mesmo a ideia de um dia muito quente!»
P: «Sim, mas não são adjectivos.»
Em ambos os casos, os professores limitaram-se a uma rectificação da categoria gramatical das palavras em evidência, afirmando «Isso não é um adjectivo, é um verbo.» ou interrogando «Isso é um adjectivo?» Ou seja, em ambos os casos se descura uma compreensão do erro do aluno que levaria certamente a um aprofundamento da análise através da referência a valores aspectuais-temporais dos verbos.
Comentários muito breves aos episódios pedagógicos relatados poderiam tomar duas direcções: uma no sentido do saber (competências científicas) e outra no sentido do saber-fazer (competências interaccionais e pedagógicas).
O primeiro desses comentários estará, sem dúvida, relacionado com a falta de conhecimentos do professor relativos à temporalidade/tempo, à substituição categorial, à reescrita/sintaxe impeditiva de uma interpretação adequada do erro. Na verdade, os alunos, ao salientarem as palavras que lhes pareciam estar a qualificar/predicar algo (o Inverno, a terra, o crocodilo), independentemente do pedido específico do professor para destacarem os adjectivos, dão uma resposta coerente com a sua intuição de falantes.
O segundo relaciona-se com a inabilidade do professor na interpretação do erro dos alunos, já que se poderia considerar a resposta à pergunta feita um pedido de explicitação do conhecimento linguístico que eles intuitivamente possuem, ou seja, a de que haverá outras formas de predicação além dos adjectivos. Tanto assim é que um dos alunos contesta a correcção do professor, dizendo: «Mas "escaldava" e "ferro em brasa" dão mesmo a ideia de um dia muito quente!», ao que o professor responde, simplesmente: «Sim, mas não são adjectivos».
Conclui-se, portanto, que a reformulação, a correcção, o comentário das respostas dos alunos exigem do professor um elevado grau de domínio da língua e dos conteúdos, informado pelo conhecimento dos contributos de vários ramos da Linguística, além de saberes dos domínios sociolinguístico e cultural que confiram ao discurso pedagógico uma maior eficácia, visto que a situação de comunicação pedagógica exige uma mestria discursiva que se reflecte em actos de fala que constituem o acto comunicativo como: explicar, perguntar, dar instruções, parafrasear, reformular, entre outros .
3. É importante que não se percam de vista as finalidades pedagógicas do ensino da língua materna aos alunos do Ensino Básico e do Ensino Secundário que apontam como caminho privilegiado a reflexão sobre a estrutura e os usos da língua, com base em «estratégias de didáctica da língua, especialmente dirigidas à tarefa de «criar consciência», i.e., de conhecer, ou melhor, «reconhecer o que se sabe, e à tarefa de alargar e diversificar o que se sabe, i.e., de saber cada vez mais sobre o que se conhece». (FARIA, 1995: 11).
Tendo em conta as consequências que estas inabilidades acarretam para os alunos, nos Ensinos Básico e Secundário, é imperioso que se invista, na formação inicial, em medidas relacionadas com a consciencialização linguística e comunicativa. Há, portanto, urgência em alterar a atitude dos professores em estágio face à língua que ensinam. E o ano de estágio é justamente o momento em que os orientadores deverão apontar cada erro ou falta para que o estagiário vá à procura dos conhecimentos em falta, num processo inacabável de investigação para a acção; deverão questionar, problematizar, fundando na atitude dubitativa a construção das diversas aprendizagens que terá como corolário a tomada de consciência, sabendo que a «Dúvida ( ... ) me inquieta mas também me devolve à incerteza, único lugar de onde é possível trabalhar de novo necessárias certezas provisórias ( ... ) Sendo metódica, a certeza da incerteza não nega a solidez da possibilidade cognitiva. A certeza fundamental: a de que posso saber. Sei que sei. Assim como sei que não sei o que me faz saber: primeiro, que posso saber melhor o que já sei; segundo, que posso saber o que ainda não sei; terceiro, que posso produzir conhecimento ainda não existente ( ... ) Saber melhor o que já sei às vezes implica saber o que antes não era possível saber. Daí a importância de educar a curiosidade».
(Freire, 1996: 18-19, citação retirada de Apple & Nóvoa, 1998: 138).
Dada a ausência de uma perspectiva epistemológica consciente torna-se necessário investir em atitudes científicas que promovam a reflexão sobre o sistema e os usos da língua. No ponto seguinte, procurar-se-á propor uma forma de optimizar o ano de estágio com vista a esse objectivo.
5. A Linguística e o estudo da língua, no quadro da formação inicial de professores de línguas (materna e estrangeiras), permite optimizar todo o processo formativo, na medida em que ajuda a formar o professor que reflecte, entre outras dimensões do acto educativo, sobre o objecto da sua disciplina: a língua materna.
No fundo, trata-se de implicar a Linguística no contexto do estágio pedagógico, dotando os professores de Português de conhecimentos capazes de melhorar a sua competência linguística e comunicativa, condição de um ensino consciente da língua materna. Não se trata de encontrar soluções didácticas ou modelos para o ensino/aprendizagem da língua materna, mas sobretudo de desenvolver no estagiário uma consciencialização linguística e comunicativa que se torne operante na prática educativa. Neste sentido, «(...) aplicar a Linguística significa informar a selecção, a organização e a apresentação dos materiais pedagógicos dos resultados da descrição-explicação das línguas particulares, nas suas diferentes variedades; aplicar a Linguística comporta sintonizar a actuação didáctica com uma clara noção de aprendizagem da língua e do complexo de operações actualizadas no desempenho; aplicar a Linguística envolve a compreensão das coordenadas e dos termos que configuram o acto verbal e bem assim do complexo de funções nele preenchidas; aplicar a Linguística passa pela utilização sistemática de uma metalinguagem coerente e explícita e pelo recurso adequado e oportuno aos próprios métodos que guiam a investigação».(Fonseca e Fonseca 1977: 25)
Aplicar a Linguística é, em síntese, consciencializar dos meios pelos quais usamos a língua na realização de diferentes significados. É, no âmbito da formação inicial, fazer com que os estagiários adquiram um sentido de controlo e de orientação para um trabalho de desenvolvimento, junto dos seus alunos, de um uso fluente e autónomo da língua em várias situações com vários objectivos comunicativos.
Assim, creio que a formação de professores de língua materna se tornaria mais produtiva se contasse com um trabalho de consciencialização da e uma maior sensibilização para a língua a ensinar, que é, de resto, uma componente da Linguística Aplicada ao Ensino das Línguas.
Como articular os contributos da linguística com o ensino da língua materna é, sem dúvida, assunto para um diálogo fecundo entre linguistas e professores. Um diálogo que tem hoje como espaço privilegiado a formação inicial de professores de língua materna, contando também com a intervenção de formadores. É necessário, quanto a mim, intensificar esse diálogo, fazendo com que a Linguística Aplicada tenha uma intervenção mais visível neste processo de formação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALARCÃO, Isabel (1996) — "Ser professor reflexivo", ALARCÃO, Isabel (org.), Formação reflexiva de professores. Estratégias de supervisão. Porto: Porto Editora, pp. 171-189.
APPLE, Michael e NÓVOA, António (orgs.) (1998) - Paulo Freire: política e pedagogia, Porto: Porto Editora.
FARIA, Isabel Hub (1995) — "Conhecer o que se sabe e saber o que se conhece", in APP, Português, a língua dos nossos projectos, Actas do I Encontro de Professores de Português.
FONSECA, F. I. e FONSECA, J. (1977) — Pragmática linguística e ensino do Português. Coimbra:
Almedina.
FONSECA, F. Irene (1994) — Gramática e pragmática: estudos de linguística geral e de linguística aplicada ao ensino de Português. Porto: Porto Editora.
FONSECA, Joaquim (1988-89) — "Ensino da língua materna como pedagogia dos discursos", Diacrítica, 3-4, Universidade do Minha, 63-67. Também se pode encontrar em FONSECA, J. (1992), Linguística e Texto/Discurso. Teoria, Descrição, Aplicação. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, pp. 235-248.
GIROUX, Henry A. (1990) — Los profesores como intelectuales. Hacia una pedagogía crítica del aprendizaje. Barcelona: M.E.C., Ediciones Paidós.
MIRA MATEUS, Ma Helena et al. (1989) — Gramática da língua portuguesa. Lisboa: Caminho. POERSCH, José (1999) — "Implicações da consciência linguística no processo ensino/aprendizagem da linguagem",
**Colóquio «A Linguística na formação do professor de português», Março de 2000, Centro de Linguística da Universidade do Porto