«(...) Em toda a história do Prémio Nobel, não me consta que o Presidente dos Estados Unidos tenha corrido para Estocolmo, por ocasião do Nobel ganho por O’Neill, Faulkner ou Hemingway, nem a Rainha de Inglaterra, tenha arrastado as suas vestes reais, desde o Palácio de Buckingham até aos frios nórdicos, para assistir à coroação nobélica do seu taciturno súbdito, T. S. Eliot. (...)»
A minha maneira de brincar
é dizer a verdade. É a brinca-
deira mais divertida do mundo.
Se, por um daqueles artifícios
cómodos, pelos quais simplifi-
camos a realidade com o fito
de a compreender, quisermos
resumir numa síndroma o mal
superior português, diremos que
esse mal consiste no provincianismo.
No dia 16 de Novembro do próximo ano cumprem-se cem anos sobre o nascimento de José Saramago, perdão, do «nosso único Nobel», como a nossa comunicação social tanto se derrete a dizer. Sim, convém roer bem este osso raro e apetecível, que tanto afaga a nossa autoestima e nos leva de novo para a grandeza dos descobrimentos! Seja como for, seria normal que as celebrações desse aniversário começassem em 16 de Novembro de 2022 e se prolongassem por um ano, até Novembro de 2023.
É como se costuma fazer. Mas, desta vez, a impaciência lusíada foi tão grande, o desejo de se agitar freneticamente o milagre Nobel, em nada inferior ao outro de Fátima, foi tão impulsivo, que aí estamos nós, avançando de um ano a efeméride, e a tocar, com acintosa paixão, o tambor da glória. Tudo se vai fazer, em grande, para que lá fora se não esqueça que em Portugal também há um Nobel da Literatura!
Com Saramago, nas letras, e Ronaldo, na bola, não há desculpa para depressões nem para vendas escandalosas de ansiolíticos. Os portugueses, quando celebram, não têm mãos a medir. Aperte-se o cinto, poupe-se no pão e nas ligaduras, mas faça-se um arraial de encher o olho. Uma festarola destas, em grande, é tão indispensável à imagem do país, como a construção de um novo estádio de futebol! Os estrangeiros vão ver como é! Camões, em 1980 não teve nada de parecido com isto, mas também é bom de ver que o nosso Luis Vaz é muito bom, é muito bom, mas não teve nunca o Nobel. Essa é que é essa. Pode dizer-se que, no tempo em que Camões comeu o pão que o diabo amassou, não havia Prémio Nobel. Pois sim, mas a julgar por aqueles que os suecos têm desprezado, está muito longe de ser líquido que o nosso Luis Vaz o abichasse.
Além do mais, o facto de ter sido castigado com um exílio para a Índia, de ter estado desempregado na Ilha de Moçambique um ror de tempo a coçar os tomates (e a defecar para cima do Índico, Cf. Jorge de Sena) e de ter andado por Lisboa, numa situação social mais do que duvidosa, a viver de uma tença e de esmolas, decerto incomodaria o olfacto fastidioso dos académicos de Estocolmo. Saramago, não! Saramago chegou e sobrou para o Prémio e os portugueses não cabem em si, de contentes. De aí, a festança que se aproxima. O Parlamento vai andar num afogadilho a produzir legislação punitiva, para quem se atrever a não gostar de Saramago. Mais: vai, parece, produzir legislação para OBRIGAR todos os portugueses a gostarem ostensivamente do autor de Memorial do Convento. Sob pena de um severo castigo. De resto, esta ideia de castigar os dissidentes começou logo por altura em que o galardão foi atribuído a Saramago.
Lembro-me de uma sessão qualquer em que o muito lido Eduardo Prado Coelho (EPC), num acesso de entusiasmo patriótico, apontou um dedo ameaçador à audiência que o escutava e disse: «Agora, sempre quero ver se alguém se atreve a criticar Saramago!» A ameaça já era bastante grotesca e indigna de um académico, mas o pior foi a estrondosa salva de palmas que ela desencadeou. Eu fiquei muito quieto, no meu lugar e não aplaudi. Intrigado, um meu vizinho perguntou-me: «Não gosta do Saramago?» Respondi-lhe: «Do que não gosto é de ser ameaçado de punição, caso não goste.»
Espantosa descoberta, a de Prado Coelho: um escritor, ao receber o Prémio Nobel fica automaticamente imune à crítica! EPC disse, ao longo da sua vida, muitas coisas singulares, mas esta foi a cereja em cima do bolo. Saramago, os demónios que tu acordas! Estávamos a voltar ao tempo das ditaduras, as quais não só nos impediam de gostarmos de certas coisas, como nos obrigavam a gostar de outras. O EPC, afogueado em erotismo patriótico, já não distinguia alhos de bugalhos. Sem dar por isso, escorregara para o protocolo salazarento. Acontecia-lhe muito, porque lia tanta coisa, que, como, com muita graça, disse a Sophia, o Eduardo sabia mais do que aquilo que percebia. Enfim, o Nobel outorgado a Saramago tem o condão de produzir, entre nós, estas coisas excessivas.
Falemos agora um bocadinho mais a sério. Não vou aqui discutir se Saramago é um bom escritor, um escritor razoável ou um escritor medíocre promovido por uma máquina bem oleada. Não interessa agora, até porque os juízos literários são muito subjectivos e escorregadios. Já um dia, quando mostrava sincera perplexidade pela promoção obscena que se andava a fazer de um jovem escritor e de um livro seu, de que se não aproveitava um único verso, alguém me observou: «Mas Você é um em um milhão, ao não admirar este escritor…»
A este tipo de argumentação, que a mais rudimentar lógica rejeita, já Bertrand Russell respondera nestes termos luminosos: «O facto de uma opinião ser amplamente compartilhada não é nenhuma evidência de que não seja completamente absurda; de facto, tendo em vista a maioria da humanidade, é mais provável que uma opinião muito difundida seja tola do que sensata.» Basta lembrarmo-nos de que, durante muitos séculos, a esmagadora maioria dos homens tinha a certeza de que a Terra era plana, que o Sol girava em torno da Terra e que os antípodas andavam de cabeça para baixo e, no entanto, essa esmagadora maioria estava errada. Foi por os académicos do Brasil nunca terem deparado com estas palavras do grande lógico matemático, que Paulo Coelho foi parar à Academia Brasileira de Letras: eram tantos a comprá-lo e a lê-lo e a dizerem que era muito bom! Que haviam de fazer os académicos brasileiros se não estender-lhe o tapete? Quem se atreve a dispensar uma estrela mediática? Um homem traduzido em dezenas de línguas? Coragem, sim, mas devagar! Além disso os homens de letras, a quem falta, deploravelmente, um mínimo de formação científica, são normalmente muito assertivos, até porque acham que as chamadas ciências exactas são mesmo exactas, do género dois e dois serem quatro. Só que isso está longe de ser assim e, voltando ao grande lógico matemático, recomendo este aforismo dele, para uso dos dogmáticos das letras: «Todas as ciências exactas são dominadas pela ideia de aproximação.»
Voltemos então ao Nobel de Saramago e aos orgasmos de admiração parola que desencadeou no nosso país, não excluindo nem as elites intelectuais nem o próprio Presidente da República, Jorge Sampaio (um homem por quem sempre tive a maior estima, admiração e gratidão). Mas a verdade é que, em toda a história do Prémio Nobel, não me consta que o Presidente dos Estados Unidos tenha corrido para Estocolmo, por ocasião do Nobel ganho por O’Neill, Faulkner ou Hemingway, nem a Rainha de Inglaterra, tenha arrastado as suas vestes reais, desde o Palácio de Buckingham até aos frios nórdicos, para assistir à coroação nobélica do seu taciturno súbdito, T. S. Eliot (que ela achava chato, soturno e incompreensível). Mas como tudo é diferente em Portugal! Não só o amor, celebrado pelos cardeais de Júlio Dantas, mas também a admiração, celebrada de cardeal para baixo!
Somos diferentes, eis a questão. Quando admiramos, admiramos aos gritos e detestamos vesgamente quem ponha uma tímida reserva. Dizer-se que não se gosta lá muito deste ou daquele romance do miraculado escritor é crime de lesa idolatria. Porque é a idolatria que, nestas alturas, entra em vigor e a idolatria odeia a reserva cautelosa. Em 1998, ano do milagre, quem não idolatrasse Saramago era inimigo da pátria. Quem, em colóquio ou viagem de turismo cultural, não metesse Saramago era tido por odioso sabotador do êxtase nacional. Prado Coelho, promovido a inquisidor-mor, estava severamente vigilante. Nada de críticas! Nada de relaxações! O momento era de adoração e de justificada histeria.
A mim, que lera alguma coisa e que vivera quase duas décadas em Londres, onde a recepção de um Nobel de Literatura ou outro era um acontecimento extremamente sóbrio e discreto, durante o qual a comunicação social noticiava mas não se extasiava provincianamente, o espalhafato lusíada confesso que me incomodou. Mais do que um bocadinho. Que diabo, toda a intelectualidade adulta sabe que as decisões de um júri são apenas as decisões de homens falíveis. É sempre agradável receber um prémio, mas um escritor consciente das fragilidades humanas deve sempre fazê-lo, with a pinch of salt, como dizem os britânicos.
Os dezoito suecos que presidem ao Nobel de Literatura não possuem especiais poderes de avaliação. São homens e, como homens, são sujeitos a lobbies, interesses, limites de conhecimento, preconceitos e ocasionais lapsos de juízo crítico. Não é pecado de maior. É só um facto da vida. Compreende-se que o prémio seja apetecível pelo seu avultado valor monetário. Já o seu prestígio intrínseco é muito mais difícil de compreender e justificar: errare humanum est, mas errar à escala a que os júris do Nobel têm errado é digno de mais que algum espanto. E não só pelo que diz respeito ao prémio de Literatura. Muita gente não sabe, mas o júri do Nobel da Física não se atreveu a dar o Prémio a Einstein, pela teoria da Relatividade, que o tornou famoso e revolucionou a Física pós-Newton: atribuíram-no aos seus trabalhos sobre o efeito fotoeléctrico, provavelmente por se não sentirem muito à vontade com a teoria da relatividade (a restrita e a generalizada), à qual não chegavam. Em Literatura, a Academia Sueca consagrou, é certo, alguns grandes escritores, como George Bernard Shaw, Eugene O’Neill, Luigi Pirandello, Anatole France, Thomas Mann, Herman Hesse, André Gide, Roger Martin du Gard, Bertrand Russell, Ernest Hemingway, William Faulkner, Albert Camus e não muitos mais.
Em compensação, por motivos os mais variados mas que nada tiveram a ver com mérito literário, galardoaram um enormíssimo número de escritores francamente menores, a maioria dos quais está hoje esquecida, deixando de fora escritores notabilíssimos (alguns, verdadeiros gigantes), como Henry James, Mark Twain, Robert Frost, Robert Lowell, Emily Dickinson, Truman Capote, Arthur Miller, Tennessee Williams, Edward Albee, John dos Passos, Virginia Woolf, Aldous Huxley, W. H. Auden, Ortega y Gasset, Miguel Unamuno, Frederico Garcia Lorca, Pío Baroja, Karen Blixen, August Strindberg, Alberto Moravia, Henrik Ibsen, Émile Zola, Jorge Luis Borges, Graham Greene, Joseph Conrad, Lawrence Durrell, Phillip Roth, Marcel Proust, Paul Claudel, Paul Valéry, André Malraux, Antoine de Saint-Exupéry, Jean Anouilh, Rainer Maria Rilke, Konstantino Kavafis, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Régio, Miguel Torga, Jorge de Sena, Sophia Andresen, Herberto Hélder. Deixo de fora ainda alguns, mas não quero alongar demais a lista.
Tudo isto nos deve conduzir a aceitar sempre com alguma sobriedade os juízos valorativos que nos chegam da Escandinávia, não nos deixando cair em tentação de idolatria. Lembrem-se da cáustica advertência do irlandês George Bernard Shaw (que aceitou o diploma e a medalha do Nobel, mas recusou galhardamente o dinheiro): «O selvagem adora ídolos de madeira e pedra, o homem civilizado, ídolos de carne e osso.» Eu prefiro não adorar nem uns nem outros. Admirá-los, sim; adorá-los, nunca.
Opinião do ensaísta Eugénio Lisboa, publicada no blogue De Rerum Natura, em 17 de novembro de 2021. Texto escrito conforme a norrma ortográfica de 1945.