« (...) Se pudéssemos usar palavrões, merda é a melhor palavra. Mas os palavrões para urina/urinar são igualmente simples (mijo/mijar). Então por que razão é que não se pode dizer “merdar"? (...)»
A língua diz tudo – ou, pelo menos, diz tudo o que há para dizer. E às vezes usa-se para não dizer outra coisa – e diz mais ainda.
Considere-se a urina. É um esplêndido substantivo. Não é preciso arranjar outra palavra. Para chegar ao verbo basta um erre: urinar.
Daí que se possa falar, com toda a clareza, em aparelho urinário, infecções urinárias e nos especialistas que mais percebem dessas coisas: os urologistas.
Já estão a ver aonde eu estou a querer chegar. Entramos no mundo do eufemismo, do nojo, dos rodeios e dos salamaleques.
Urinar é uma palavra feia, como urina, mas poderia ser bonita, atendendo ao que significa?
Ensinamos as crianças a dizer «chichi», mas também nós ficamos ensinados para toda a vida, dizendo que vamos fazer chichi independentemente da idade e ficando horrorizados se alguém diz que vai urinar.
Mas é bom saber que a palavra existe e é fácil de usar, sem ser apenas para ir ao médico.
Não é a mesma coisa com as fezes e defecar, porque enquanto a raiz grega de urina também quer dizer «urina», as fezes são um eufemismo. São sobras de uma filtragem e defecar é «filtrar, separar as borras, depurar».
Mesmo assim, falar em fezes e defecar é preferível a dizer evacuar ou obrar ou «pôr os intestinos a funcionar».
Se pudéssemos usar palavrões, merda é a melhor palavra. Mas os palavrões para urina/urinar são igualmente simples (mijo/mijar). Então por que razão é que não se pode dizer “merdar"?
“Merdar” faz falta por ser explícito. Dizer que «se vai fazer merda» é invocar outra ordem de assuntos.
Temos cagar, mas não existe “cago” como substantivo. Se há mijar e se mijo é o produto porque não há cagar e "cago"?
Há cagalhão, mas é só um, é muito preciso. É como se mijo fosse um só jacto.
O que se há-de fazer?
Crónica incluída no jornal Público em 25 de maio de 2021. Segue a norma ortográfica de 45.