« (...) [A] verdade é que tudo o que nós estivemos a escrever neste diálogo foi escrito no tal idioma-padrão comum que supostamente não existe. Nenhum de nós precisou de ir ao dicionário. Nenhum de nós teve dificuldades em entender as crónicas dos outros. Nenhum de nós encontrou sequer um falso amigo, nem seria de esperar que o encontrasse à mesa deste bar. (...)»
Curiosamente, os gregos antigos não usavam a palavra megalomania, que para nós significa «mania das grandezas», mas que nasceu só com a psiquiatria do século XIX. Mais curiosamente ainda, os gregos antigos tinham uma palavra para o seu oposto: μικρολογία, ou micrologia, que usavam para satirizar argumentos fastidiosos ou picuinhas, obcecados com aquilo que mais tarde se chamaria o «narcisismo das pequenas diferenças».
E porque começo com curiosidades? Porque estou sentado à mesa do bar com dois amigos. Primeiro foi o Sérgio Rodrigues, da Folha de São Paulo, que se despediu dramaticamente da lusofonia e a quem eu pedi que ficasse bebendo mais uma na crónica da semana passada, a que chamei Ainda dá para salvar a lusofonia?. A minha proposta era que se fosse conversando acerca do que podem fazer os governos e os cidadãos de língua portuguesa para tirar a CPLP do marasmo em que se encontra. O alinhamento certo de governos, que hoje claramente não existe, poderia investir em ideias como a criação de um canal internacional da língua portuguesa ou de financiar um instituto conjunto (e não, não era no IILP que eu estava a pensar, mas antes em algo como uma rede de escolas e leitorados apoiados por vários governos e que permitisse aos alunos estrangeiros o convívio com os vários falares e normas do português, evitando o terem de escolher umas em detrimento das outras). Os cidadãos empenhados dos nossos vários países poderiam acelerar — anulando as distâncias e fazendo mais barato, como a pandemia nos ensinou — as trocas literárias, académicas ou da sociedade civil, criando um Parlamento de Escritores ou uma rede de defensores de direitos humanos em língua portuguesa.
Ora entretanto, como é natural nas conversas à mesa do bar, juntou-se um terceiro amigo, o Nuno Pacheco aqui do Público, gentilmente verberando as minhas sugestões como sendo exemplo da tal megalomania, porquanto «não há, nem deve haver, um idioma-padrão comum a todos os falantes de português». A fantasia do idioma-padrão é uma das “falsas ideias” que o Nuno atribui ao mal-amado (por ele) Acordo Ortográfico, que, como as tais “megalomanias” da lusofonia, deve ser “descartado de vez”.
Já o Sérgio respondeu também na Folha em nova crónica, intitulada Que país é esse no espelho?, e na qual argumenta que o «mito da lusofonia agravou nosso transtorno dismórfico linguístico», ou seja, que no Brasil a distância e até repulsa entre a norma culta e a norma popular aumentou com a crença, no fundo, de que Portugal seria o dono da língua. «Se a maioria dos portugueses concordaria com a afirmativa de que os brasileiros falam e escrevem "errado"», escreve o Sérgio, “multidões de brasileiros também pensam assim”. A solução seria autonomizar o português brasileiro, o que permitiria restaurar a autoestima da sua norma popular.
Voltando aos gregos. Conta-se que Diógenes, o Cínico, refutou um dos paradoxos de Zenão de Eleia, segundo o qual o movimento era impossível, sem dizer uma palavra. Simplesmente levantou-se e caminhou de um canto para o outro da sala onde estava. Chamou-se a isto, em latim, solviter ambulando, ou resolver um problema andando. Da mesma forma, e sem apresentar um único argumento, nós já resolvemos aqui as objeções do Nuno e do Sérgio sobre a impossibilidade (desejável para um, lamentável para o outro) da existência de «um idioma-padrão comum a todos os falantes de português». Chamemos-lhe solviter scribendo, ou resolvendo ao escrever: a verdade é que tudo o que nós estivemos a escrever neste diálogo foi escrito no tal idioma-padrão comum que supostamente não existe. Nenhum de nós precisou de ir ao dicionário. Nenhum de nós teve dificuldades em entender as crónicas dos outros. Nenhum de nós encontrou sequer um falso amigo, nem seria de esperar que o encontrasse à mesa deste bar.
Isto tem, já agora, zero que ver com a ortografia e pouco que ver com as desconfianças entre norma culta e popular. As línguas que têm ortografia unificada continuam a ter registos diversos e as que não têm ortografia unificada continuam a ter um idioma-padrão compreendido por toda a gente.
Não é megalomania entender esta realidade. Mas permitir que o sentimento de amor à diversidade da língua, que eu partilho, descambe em “micrologia”, no sentido grego antigo, é que é um erro equivalente aos dos pais que gostam tanto dos filhos que querem que eles sejam pequenos para sempre. Mas felizmente, daqui a umas décadas, portugueses e brasileiros empenhados em amar a língua até a asfixiar serão ultrapassados em número por africanos lusófonos de vários países que continuarão a ter vários registos de um mesmo idioma-padrão. Nisso não somos diferentes de qualquer outra língua internacional. E ainda bem.
A única questão é se queremos fazer qualquer coisa com isso, ou se queremos negar a realidade e ficar encafuados na micrologia.