Na sua obra Conversação Latina (Livraria Apostolado da Imprensa, Porto 1960), o insigne latinista e helenista português António Freire, (1919–1997) incluiu um vocabulário português-latino dos «Principais topónimos», tanto portugueses como estrangeiros, dividido em três secções:
«1. Algumas regiões maiores, nações e respectivos habitantes» (p. 155–157)
«2. Cidades e localidades menores» (p. 157–160)
«3. Mares, rios e montes» (p. 160–161)
Na secção relativa a «Cidades e localidades menores» desta obra, não figura, infelizmente, o nome de Vizela, embora na secção referente a «Mares, rios e montes» conste o potamónimo «Vizela (rio), Avicella» (p. 164). No entanto, os vizelenses — pelo menos os mais instruídos — parecem não ter dúvidas sobre o nome latino da sua terra, como se pode verificar no cartaz que ilustra este artigo, concernente à edição de 2014 da efeméride «Vizela Romana», onde se lê, em letras garrafais, a designação Oculis Calidarum, seguida da tradução literal do topónimo («Olhos de Água Quente»).
No sítio da edição de 2020 desta mesma efeméride, lemos a seguinte descrição: «Estamos no Alto-Império Romano, ano 82 d.C., na civitas “Oculis Calidarum” (Caldas de Vizela), local onde o Imperador César Domiciano Augusto mandou edificar um complexo de banhos públicos em honra do Deus “Bormanicus”, cujo poder da cura se manifesta através das águas quentes que aqui brotam.»
No sítio da Direção-Geral do Património Cultural lemos algo semelhante: «O reconhecimento da importância das águas de Vizela remonta ao período romano (inícios do século I a C.), ficando desde logo patente a importância das águas sulfurosas no nome da povoação que aí existia: Oculis Calidarum ou seja, “olhos de água quente”.
Na tese de Doutoramento em Arqueologia, Área de Conhecimento de Arqueologia da Paisagem e do Povoamento, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, datada de 2008, da autoria de Helena Paula Abreu de Carvalho, intitulada O povoamento romano na fachada ocidental do Conventus Bracarensis e disponível aqui, é também a forma Oculis Calidarum que se lê, por diversas vezes.
O mesmo acontece na tese de Mestrado em História e Património, Ramo de Estudos Locais e Regionais, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, da autoria de José Eugénio Carvalho da Silva, datada de 2013, intitulada Vizela, Desenvolvimento e Antagonismos Políticos: As Disputas Autonómicas da Regeneração à República e disponível aqui.
Apesar de todo este consenso, será que podemos afirmar, de forma inquestionável, que o nome latino de Vizela é mesmo Oculis Calidarum? Este topónimo não terá certamente caído do céu, pelo que importa consultar os documentos antigos e ver o que dizem.
Encontrei‑o em De Antiquitatibus Conventus Bracaraugustani / Das Antiguidades da Chancellaria de Braga (1738), obra bilíngue em cinco partes — que na altura se chamavam libri, ou seja, «livros» — da lavra de Jerónimo Contador de Argote (1676–1749), clérigo teatino e historiador português, mais conhecido pelo curioso manual Regras da Lingua Portugueza, Espelho da Lingua Latina, ou disposiçaõ para facilitar o ensino da lingua Latina pelas regras da Portugueza (1725). Em «Antiguidades», o nome latino de Vizela aparece apenas uma vez, no Capítulo XI do quinto e último livro, referente ao ano de 995, no seguinte passo:
«[...] cum [...] sisteret in Paræcia, quæ dicebatur Oculi Calidarum Sancti Michaëlis [...]». (p. 495)
O próprio autor — ou, mais propriamente, compilador e tradutor — aduz a versão portuguesa logo a seguir, na ortografia da época:
«[...] parando na Freguezia, a que chamavão as Caldas de S. Miguel [...]». (p. 498)
O nome completo da freguesia em questão era, portanto, Oculi Calidarum Sancti Michaëlis, que, traduzido à letra, quer dizer «Olhos das Caldas de São Miguel». Contador de Argote, porém, e com propriedade, traduz Oculi Calidarum apenas por «Caldas». Refira-se ainda a grafia paræcia ou paraecia («paróquia, freguesia»), que difere da forma dicionarizada (paroecia).
Apensos às «Antiguidades», há vários documentos em latim, desta vez sem tradução. Num deles, uma escritura do rei Afonso V de Leão (994–1028), o nome da localidade aparece duas vezes, na mesma página (p. 563). Seguem-se as citações e a minha tradução das mesmas:
«[...] hic in oculis Calidarum surrexerunt omnes iniqui [...]» («aqui nas Caldas sublevaram-se todos os iníquos [...]»).
«sicut & jurarunt hic in Sancti Michaelis Archangeli in oculis Calidarum [...] («assim como juraram aqui na [freguesia] de São Miguel Arcanjo nas Caldas [...]»).
Verifica-se, pois, que, nestas últimas citações, aparece a forma oculis Calidarum, enquanto na primeira se lê Oculi Calidarum. Se nos abstrairmos do pormenor das maiúsculas, que não é decisivo (ou seja, fazendo de conta que se lê Oculis, em vez de oculis, nas duas últimas citações), o que importa é sabermos por que motivo num documento aparece a forma Oculi, enquanto no outro se lê Oculis. Isto leva-nos à questão das declinações latinas.
Para os leitores que não estejam familiarizados com a questão das declinações, permito‑me fazer aqui um pequeno excurso. Consideremos as seguintes frases em português:
(1) O pai chegou cedo.
(2) Bom dia, pai!
(3) O carro do pai é cinzento.
(4) Vi o pai ontem à tarde.
(5) Dei um livro ao pai.
(6) Fui com o pai ao cinema.
Em cada uma destas seis frases, a palavra pai desempenha uma função diferente, mas em todas elas apresenta a mesma forma. Se traduzíssemos estas frases para espanhol, o mesmo se passaria com o termo correspondente (padre), pois o português e o espanhol têm basicamente a mesma estrutura. Se as traduzíssemos para latim, porém, o termo correspondente apresentaria nada menos que cinco formas diferentes; pater (1) (2), patris (3), patrem (4), patri (5) e patre (6). Isto porque a função de pai em cada uma das frases corresponde a um caso diferente, e, em latim, a palavra em apreço apresenta uma forma diferente para cada caso, exceto em relação aos dois primeiros casos, cuja forma coincide.
Os casos denominam-se da seguinte forma: nominativo (1), vocativo (2), genitivo (3), acusativo (4), dativo (5) e ablativo (6). A grande diferença, portanto, é que pai (tal como padre em espanhol), não é declinável, enquanto pater é declinável, ou seja, a sua forma varia consoante a função que desempenha.
O nome latino de Vizela, como qualquer substantivo que se preze, seja ou não topónimo, é declinável, apresentando as seguintes formas:
1) Nominativo: Oculi Calidarum
2) Vocativo: Oculi Calidarum
3) Genitivo: Oculorum Calidarum
4) Acusativo: Oculos Calidarum
5) Dativo: Oculis Calidarum
6) Ablativo: Oculis Calidarum
Por se tratar de uma declinação diferente, este topónimo apresenta, não cinco, mas quatro formas diferentes, pois o vocativo coincide com o nominativo (tal como acontece com pater), e o ablativo com o dativo. Todas estas formas são corretas à partida, embora possam não estar corretas em determinado contexto, se não for utilizada a forma adequada consoante o caso exigido pela gramática. Por exemplo, se, em vez de Oculi Calidarum, usarmos Oculos Calidarum como sujeito de uma oração latina, esta forma não estará correta nessa circunstância, embora o estivesse caso nos servíssemos da mesma para expressar o complemento direto noutra oração.
Qual é, então, o nome de Vizela em latim? Trata-se de uma pergunta legítima. Normalmente, quando se pergunta «Como é que se diz isto ou aquilo em latim?», responde-se com a forma do nominativo. Por exemplo, como é que se diz cão em latim? Diz-se canis. Como é que se diz cães? Diz-se canes. O mesmo em relação aos topónimos. Como é se diz Beja? Pax Iulia. E Lisboa? Olisipo. E Vizela? Oculi Calidarum!
Não me parece curial defender-se, como se lê em documentação vária, que Vizela se diz Oculis Calidarum em latim, apesar de esta forma também existir e ser correta. Esta prática contraria o hábito secular de considerarmos a forma do nominativo latino como a “mais imediata” ou a “mais equivalente” à forma lusa. É, aliás, sempre a forma do nominativo, acompanhada da desinência do genitivo, que figura nos dicionários, como se pode constatar na referida obra de António Freire, onde se lê, por exemplo, «Abrantes, Tubucci» (e não Tubuccis) e «Chaves, Aquae Flaviae» (e não Aquis Flaviis).
Donde virá, então, esta prática errada? Creio que poderá dever-se ao facto de o primeiro estudioso da questão, ao ler a expressão in Oculis Calidarum, no referido documento ou noutro análogo, e ao reconhecer facilmente a preposição in («em»), ter assumido que o nome da localidade seria Oculis Calidarum, sem reparar, ou sem saber, que se tratava da forma do ablativo, regida pela dita preposição. É como se alguém, ao ler a frase My father’s name is Robert («O meu pai chama-se Robert») num manuscrito antigo, assumisse, por descuido ou desconhecimento, que pai se diz father’s em inglês...
Esperemos que alguém possa ou queira emendar o erro em futuras edições da efeméride «Vizela Romana», embora a forma Oculis Calidarum pareça arreigada... Refira-se, a talho de foice, que existe mais um erro de concordância no referido cartaz, pois JUNIUS deveria estar no genitivo: JUNII («de junho»).
Por último, a título de curiosidade, diga-se que, em latim clássico, para indicar o lugar onde, se utilizam dois procedimentos distintos:
(1) No caso de nomes próprios de lugares maiores (países, regiões, províncias, ilhas grandes) usa-se o ablativo com a preposição in («em»).
(2) No caso de nomes próprios de lugares menores (cidades, ilhas menores e outras localidades) usa-se o locativo (se o nome for da primeira ou da segunda declinação do singular) ou o ablativo (se for da terceira declinação ou do plural da primeira ou da segunda) sem qualquer preposição.
No caso de Oculi Calidarum, tratando-se de um nome de lugar menor da primeira declinação do plural), a forma correta para dizer «em Vizela» em latim clássico não é in Oculis Calidarum, mas sim Oculis Calidarum (sem preposição), por exemplo: Oculis Calidarum natus est («Nasceu em Vizela»). No entanto, o latim medieval fazia descaso desta subtileza clássica, pelo que se encontra a expressão in Oculis Calidarum em manuscritos tardios.