«(...) [Q]uando nos viramos para a esquerda, as línguas latinas da Península Ibérica são originais. O castelhano usa izquierda, o catalão esquerra e nós, mais a ocidente, no galego e no português, usamos esquerda. Estamos bem longe da gauche francesa, logo depois dos Pirenéus. (...)»
As palavras andam sempre às guinadas, virando à direita e à esquerda sem pedir autorização. As palavras direita e esquerda, que indicam uma direcção, passaram a indicar também ideologias políticas – ou melhor, classificações genéricas de várias ideologias políticas diferentes. Tudo por causa da disposição dos vários partidos nos Estados Gerais, logo após a Revolução Francesa.
Mas não é da origem dos termos políticos que quero falar hoje. Quero olhar para as próprias palavras direita e esquerda e ver de onde vêm.
Direita é fácil. Para começar, é a forma feminina da palavra direito. Como acontece algumas vezes em português, as formas masculina e feminina têm significados diferentes. Diferentes como são, tanto direito como direita vêm da palavra latina directus. É uma etimologia muito direita – ou directa – e pouco surpreendente. A mesma palavra, com outras roupagens, aparece nas várias línguas latinas – e também aparece duplicada em português, no directo e derivadas.
Já quando nos viramos para a esquerda, as línguas latinas da Península Ibérica são originais. O castelhano usa izquierda, o catalão esquerra e nós, mais a ocidente, no galego e no português, usamos esquerda. Estamos bem longe da gauche francesa, logo depois dos Pirenéus.
Donde vem esta esquerda ibérica? O mais provável é que venha da única língua ibérica que não é latina: o basco. Nessa língua, esquerda diz-se ezker, que tem várias formas gramaticais, incluindo ezkerra. Daí terá partido em direcção às outras línguas ibéricas. Não há certezas: a ter existido, essa exportação basca fez-se há muito tempo. Há quem avance a hipótese de ser uma palavra com origem numa outra língua ibérica mais antiga, entretanto desaparecida, que terá deixado algumas palavras de herança no basco e nas línguas latinas das redondezas. O certo é que a palavra é partilhada por todas as línguas da Península Ibérica – e não é de origem latina…
O basco é uma língua isolada, ou seja, não se conhecem irmãs, pais, primos, enteados. Do russo ao português, passando pelo inglês, pelo irlandês, pelo grego e albanês, entre tantas e tantas outras, quase todas as línguas hoje faladas na Europa têm origem no proto-indo-europeu, uma língua falada há uns 5000 anos. Quase todas. Há excepções interessantes, como o estónio, o finlandês, o húngaro, o lapão, o maltês, o turco… Mas todas estas excepções têm outros familiares. Já o basco é a excepção dentro das excepções: não se conhece a família. O que se sabe é que é uma língua falada por aquelas bandas há muito, muito tempo.
É uma língua isolada, mas contém dentro de si multidões. Os vários dialectos bascos são tão distantes uns dos outros que poderíamos, sem errar muito, falar em várias línguas bascas. Desde o século XIX, desenvolveu-se um padrão, uma língua basca unificada (euskara batua), ensinada nas escolas e usada na escrita.
Esta língua tem várias importações latinas e castelhanas e, por isso, conseguimos reconhecer algumas palavras. Mas as palavras que são de origem basca têm um indesmentível ar de língua distante – e, no entanto, está mesmo aqui ao lado.
O nosso mar, em bocas bascas, transforma-se em itsaso. A água diz-se ur. Se o nome do mar parece, em basco, ter sílabas a mais, a água parece ficar reduzida ao murmúrio duma fonte. Mas isto são impressões dum português a tentar orientar-se no meio de palavras tão estranhas – na verdade, este ur é mais interessante por ser diferente de todas as águas em seu redor do que por nos soar, por mero acaso, a murmúrio.
E os números? São bem distantes dos nossos. Contemos até dez: «bat, bi, hiru, lau, bost, sei, zazpi, zortzi, bederatzi, hamar». Se olharmos para a gramática, ainda há mais para admirar, mas não vamos por aí.
Deixo outra palavra muito importante no basco: arrantzaleek, ou seja, pescadores. Os pescadores bascos aventuraram-se desde muito cedo pelas águas do Atlântico Norte e chegaram bem longe. Há até quem diga que chegaram às costas americanas ainda antes de Colombo.
Ora, mesmo que não tenham sido os primeiros europeus a pisar aquelas terras, a verdade é que se tornaram presença assídua por aquelas paragens – e surgiu até uma espécie de língua franca que misturava basco com línguas nativas. É verdade: houve nativos americanos que usaram, durante muitas gerações, palavras bascas. Alguns franceses que chegaram ao que é hoje o Canadá ficaram muito admirados por encontrar palavras duma língua desprezada do sul da França.
Quando pensamos nos nativos americanos, a nossa imaginação está formatada pelos velhos westerns, em que imponentes índios esperam cowboys no cimo de uma colina. Muitos desses filmes eram gravados, na verdade, no Sul de Espanha, ali para os lados de Almeria. E, na vida real, alguns dos verdadeiros nativos sabiam palavras faladas em aldeias perdidas nos Pirenéus – talvez até soubessem dizer algo parecido com a nossa esquerda. As voltas que as palavras dão…
Apontamento da autoria a autoria do professor universitário e tradutor Marco Neves, transcrito, com a devida vénia, do blogue Certas Palavras, com a data de 30 de julho de 2020.