«Ensino à distância» ou «ensino a distância»? Carlos Rocha propõe pistas históricas para a compreensão das duas formas em disputa e para a definição de um critério de uso.
Os argumentos apresentados por Pedro Múrias são robustos, realmente obrigando, se não a rever, a moderar a avaliação do uso de «à distância». No entanto, convém situar um pouco a questão:
1. Proponho que a discussão entre «a distância» e «à distância» encontre a sua origem em textos normativos produzidos no Brasil, uma vez que o contraste fonológico entre a preposição a e a contracção à não é perceptível no português do Brasil, impondo-se a necessidade de buscar argumentos semânticos que permitam reconhecer a diferença. Julgo, por isso, que alguns gramáticos começaram a procurar destrinças no plano semântico onde o uso anterior não as tinha criado; não digo que tais destrinças sejam absurdas, pelo contrário, decorrem muitas vezes de interpretações congruentes com determinado contexto. Mas, na verdade, ao consultar Napoleão Mendes de Almeida (Dicionário de Questões Vernáculas, São Paulo, Edições Ática), encontro muitas expressões sem contracção, isto é, sem crase, em claro contraste com a formas associadas à contracção em português europeu (à esquerda, formas registadas por Napoleão Mendes de Almeida):
a colação = à colação
a compita = à compita
a deriva = à deriva
a escuta = à escuta
a farta = à farta
a noite = à noite
a pressa = à pressa
a socapa = à socapa
a sorrelfa = à sorrelfa
a toa = à toa
Contudo, consultando um dicionário publicado em Portugal, o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, numa edição de 1985, verifico que só se acolhe à distância. Parece-me, portanto, que em Portugal a expressão usual, preferida ou recomendada era a que apresentava contracção.
2. Historicamente, não acho que, pelo menos, em português europeu, o à de «à pressa» ou «à distância», não seja a contracção da preposição com o artigo definido, porque, embora ocorra em posição átona, subordinando-se ao acento da palavra que acompanha (pressa, distância), o timbre da forma à é aberto, por oposição ao timbre fechado da preposição a ou do artigo definido a, o que sugere um fenómeno de crase, como o que ocorreu, em âmbito de palavra, a caveira (de caaveira). Se em caaveira existiam duas vogais em hiato, é de supor que em «à pressa» o mesmo acontecesse, com a particularidade de tais vogais marcarem palavras funcionais diferentes (*«a a pressa»). Sendo assim, posso concordar que actualmente, na interpretação do à de «à pressa», seja irrelevante argumentar com a semântica do artigo definido aí amalgamado, mas já tenho dúvidas de que se trate de um processo criativo que visa evitar a ambiguidade de formas como «fazer a pressa», em que «a pressa» poderá ser tomado por um complemento directo de fazer. Proponho antes que a forma contraída se manteve nessas locuções justamente porque se fixou assim, como esquema ou modelo locucional, num processo de lexicalização afim da criação das frases feitas.
3. Entre as fontes citadas por Josué Alves da Silva, no portal do Clube Jurídico do Brasil (correspondente à ligação enviada), encontra-se o parecer de Maria Helena de Moura Neves, no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2002, pág. 21), que não está completo. Ora, a citação desse parecer na íntegra permite perspectivar um pouco melhor a discussão:
Quando se segue da palavra distância, registram-se, tradicionalmente, as seguintes expressões adverbiais:
a distância, quando não há especificação numérica para a distância: o a (sem acento grave) é uma simples preposição. Nixon e Reagan conseguiram manter os radicais religiosos A DISTÂNCIA. (VEJ)
à distância, quando há especificação numérica para a distância: o à (com acento grave) é o resultado de uma crase (fusão) da preposição a com o artigo definido a. Que toda a residência disponha, À DISTÂNCIA de no máximo 200 metros, de uma praça ou parque para crianças e idiodos. (LAZ) Entretanto, também é usual a expressão à distância (com acento grave no a) quando não há especificação numérica para a distância. Ocorre que, com o artigo antes do substantivo, e, portanto, com a crase (à), pode-se obter indicação mais segura de que se trata de uma expressão adverbial, e, a partir daí, pode haver maior clareza de significado. Hoje técnico da seleção japonesa, Falcão evita comentários À DISTÂNCIA. (VEJ)
Por outras palavras, havendo ambiguidade, opta-se pela forma «à distância». Esta é também a posição do Dicionário Houaiss, onde, numa anotação ao artigo de distância, se lê:
o uso gramatical baseado nos clássicos da língua é de que o sintagma a distância, quando a distância de que se fala não é especificada, se grafe sem crase: viram algo movendo-se a distância; e com crase, se a distância é especificada: o portão ficava à distância de 4 m; sugere-se, porém, mesmo no primeiro caso, usar da crase, quando a sua falta comprometer de algum modo a clareza da frase: <a sentinela vigia à distância>.
Tendo em conta o que afirmo em 2, a função desambiguadora atribuída a à afigura-se-me mais como uma forma (legítima) de gramáticos normativos ou falantes mais conscientes do funcionamento da língua racionalizarem um uso que, repito, me parece fundado numa prática linguística que cristalizou.
4. No entanto, gostaria de lembrar que há locuções adverbiais introduzidas apenas pela preposição a: «escrever a tinta», «pintar a óleo». Além disso, existem construções nas quais ocorre o substantivo sem artigo definido — «ter distância», «tomar distância» —, conferindo ao substantivo distância a função de atribuir globalmente significado lexical à locução.
Em conclusão, a respeito da expressão em apreço, existem duas variantes em concorrência, não se podendo afirmar que «ensino à distância» é expressão incorrecta, nem que «a distância» é de rejeitar totalmente. Do ponto de vista da definição de uma norma, optaria por «à distância», seguindo o critério que é descrito por Moura Neves e pelo Dicionário Houaiss.
[Cf. À distância, e não à pressa e Três razões para ser «à distância» (e não «a distância»)]