Uma vez que uma reacção minha ao artigo de José Mário Costa intitulado «Portugueses que preferem o inglês» mereceu duas respostas da parte do Ciberdúvidas, gostava, sem pretender entrar em grandes polémicas, de acrescentar algumas observações:
1. Tem toda a razão o professor José Neves Henriques: «ter a ver com» é de facto um galicismo. Escapou. Deve ser influência do Eça de Queirós...
2. João Carreira Bom, que é de opinião contrária à minha, defende a sua posição com alguns exemplos tirados d’«Os Lusíadas». Ora, Camões é um poeta e não raro a poesia obriga, a bem do ritmo da frase ou da rima, se a há (como reconhece JCB), a construções que em prosa seriam criticáveis. Acresce que, contrariamente a JCB, não me parece que Camões tenha escrito «o melhor português de que há memória». Salvo melhor opinião, Camões não é propriamente um mestre da língua, pelo menos do nível de Vieira, Bernardes ou Camilo. Aliás, é sistematicamente citado como exemplo decacofonia a evitar: «Alma minha, gentil, que te partiste» (o ritmo do verso a isso o obrigou).
3. Ao contrário do que afirma JCB, eu não admito a ordem directa (com o verbo aparecer ou com outro) «se houver complemento circunstancial de tempo». O que eu disse foi que «o artigo indefinido não permite esta construção». Precisando melhor: com verbos intransitivos, não se deve começar pelo sujeito uma frase em que este começa com um artigo indefinido. Assim, é incorrecto dizer «Uma criança nasceu hoje num avião», devendo dizer-se «Hoje, nasceu uma criança num avião» ou «Num avião, nasceu hoje uma criança». Mas já se poderá dizer «A criança nasceu hoje num avião». Mas há outros casos, menos categóricos, como a voz passiva: não se deve dizer «Em duas semanas um filme foi rodado» (deve dizer-se «Rodou-se um filme em duas semanas» ou «Em duas semanas foi rodado um filme»); mas dir-se-á «O filme foi rodado em duas semanas». Mas aqui, como disse, já não sou tão categórico pois é perfeitamente possível dizer «Fulano era um escritor muito rápido: uma peça de teatro era escrita em duas semanas, um romance volumoso em dois meses». Tudo depende do que se quer destacar na frase... e da sensibilidade que se tem para a língua. Uma coisa é certa: com esta moda - começada com as más traduções feitas a partir do francês e do inglês - de iniciar todas as frases pelo sujeito, a língua portuguesa vai perder uma das suas grandes riquezas.
A partir daqui, já não vale a pena rebater JCB, uma vez que ele desenvolve um raciocínio destinado a contestar uma afirmação que não fiz e que não me parece que se possa inferir do que escrevi.
4. Já agora, gostava de perguntar a JCB o que pensa da frase «Tudo não passou de um grande susto», que é uma das frases preferidas do Telejornal da RTP1. A mim, arranha-me os ouvidos, pois entendo que o correcto é dizer «Não passou tudo de um grande susto». E ao meu amigo?
5. Para terminar, se me permitem, uma última observação: conforme escrevi acima, não tenho a menor dúvida de que esta tendência para começar tudo pelo sujeito veio, primeiro, de más traduções feitas a partir do francês e, principalmente, do inglês e, seguidamente, de um copiar deliberado deste último por parte de certa camada da sociedade portuguesa - não vale a pena referir aquele período, que espero já tenha passado, em que os professores de português diziam aos alunos que «em português, as frases constroem-se começando pelo sujeito, depois o verbo e no fim os complementos», pela simples razão que aquilo lhes entrava por um ouvido e saía por outro. Vejam-se frases como «A esta hora, já era suposto estar em casa» ou termos como «globalização» e ver-se-á do que (de quem) estou a falar. E, à força de se ouvirem diariamente, certas barbaridades começam por ser toleradas, depois são aceites e finalmente acabam por entrar na língua. Neste caso é pena porque ela fica mais pobre.
Mas há mais exemplos: estão a perder-se tanto o conjuntivo como o artigo indefinido (quanto a certos superlativos, como paupérrimo ou simpaticíssimo ou mesmo dificílimo, já soam a mofo; agora diz-se pobríssimo, que é lindíssimo, e dificilíssimo, que é facilíssimo de dizer). Pois se o inglês, que é o inglês, não tem conjuntivo, nem artigo indefinido plural, nem superlativos, para que é que a gente se há-de preocupar com essas ninharias? Pois se em inglês, que é o inglês, se vêem títulos como «Formatting a document», por que razão é que agente não há-de escrever «Formatando um documento»? Pois se os americanos, que são os americanos, que falam inglês, que é o inglês, escrevem Hong Kong, que pronunciam como se se tratasse do nome de uma aldeia do Texas, por que carga de água é que a RTP não os há-de copiar na escrita e na pronúncia? Francamente, há pessoas que ainda não compreenderam o que é a globalização!
Cf. contraponto desta controvérsia em Um problema de ênfase.