Quanto percentagem da população angolana que fala português, convém assinalar que a língua portuguesa impôs-se um pouco por todo o lado em Angola, e não só nos meios urbanos. Por altura de 1974, ano em que se iniciou o processo que levou à independência, os portugueses faziam tentativas de generalizar a língua portuguesa através do acesso mais fácil dos jovens negros ao ensino rudimentar e básico. Por outro lado, as rádios transmitiam em língua portuguesa (Emissora Oficial, Rádio Clube de Angola, Rádio Ecclésia, e os rádios clubes de todos os distritos – a rádio em Angola estava muito desenvolvida e por isso no pós-independência muitos radialistas tiveram grande êxito em Portugal), só havendo uma estação, adjacente à Emissora Oficial, a Voz de Angola, que transmitia nas diversas línguas da "província", funcionando como veículo de contrapropaganda à Voz da Revolução do MPLA (que transmitia em língua portuguesa e noutras angolanas) e à Voz de Angola Livre - Liberdade e Terra da FNLA que transmitia de Kinshasa. A partir de 1975 o ensino entrou em quase colapso, especialmente depois de Março, altura em que nós todos, os professores e estudantes afectos ao MPLA entrámos em greve contra o ministro da Educação da UNITA Jerónimo Wanga. Foi, reconheço, uma opção precipitada, porque paralisou o ensino numa altura de crise, e a UNITA agradeceu... A seguir à independência, e com a saída generalizada dos professores portugueses, o Governo tentou formar professores nacionais, sucedendo-se as medidas de formação. Os antigos manuais coloniais foram substituídos por manuais socialistas. Os professores nacionais tentaram impor-se como classe autónoma frente ao poder, mas foi muito difícil. Eu próprio fui professor de História na Escola Comercial em Luanda, em 1974-75. Não havia manuais e eu tive de fazer apontamentos, já numa vertente africanista. Em 1976 leccionei História e Geografia na Escola Secundária Nicolau Spencer em Cabinda. O ensino era todo ministrado em língua portuguesa. Em Cabinda, todos gostavam de falar bem o português porque aquele povo sentia-se muito ligado aos portugueses. Imaginem que um velho chefe de buala conservava ainda a bandeira portuguesa. Disse-me ele: foi um chefe português que me deu a bandeira, tenho de a entregar também a um chefe português e não a um de Luanda. Já na década de 80 percorri praticamente todas as zonas de guerra, onde nem sequer havia ensino. A língua portuguesa continuava a ser falada.
Bem ou mal falada? Que vos parece? Sociedades sem ensino, sem vida intelectual... que português poderiam falar? Talvez não seguissem a gramática portuguesa, mas faziam um terrível esforço por se fazer entender em português. As populações estavam deslocadas, vítimas da guerra, andavam fugidas de um lado para o outro, as mães alimentavam as crianças com capim e água, eu vi pessoas de várias etnias misturadas e cheias de angústia. Tinham de falar e queixar-se em português. Eu fui levar socorros ao planalto do Chinguar, era uma zona proibida ao Governo, as pessoas estavam todas nuas, perguntaram o meu nome e gritaram: "Viva o camarada Rui!". (O "r" soou mais como um "g" porque nas línguas bantu não há o som "erre").
Tudo isto se passou ao longo do Huambo, ao longo do Bié e mais tarde no Lubango e no Cunene, quando fui levar socorros aos deslocados da invasão sul-africana. Isto é: um país devastado pela guerra total, com o tecido social destruído, sem escolas, mas onde permaneceu a língua portuguesa como ela podia ser falada, e talvez como se falaria em Trás-os-Montes, em Lisboa, etc., se tivessem enfrentado uma guerra daquele género e deixassem de ter escolas, jornais, e as pessoas andassem a fugir de um lado para o outro.
Na década de 90 voltei a Benguela, ao Bié, ao Andulo (onde o administrador era um filho de um comerciante português, nomeado pelo MPLA e posteriormente assassinado pela UNITA), a Cabinda, e em todo o lado continuava a falar-se português.
Não posso falar de percentagens de falantes de português. Mas deve haver milhões de "mal-falantes" de português nos megacentros urbanos, onde se cruzam populações fugidas à guerra de todas as origens étnicas e que não só têm de falar português mas que também transformam os filhos em falantes que têm a língua portuguesa como "língua-mãe"
Quando ao segundo tópico da pegunta («O português é a língua em que as figuras dirigentes preferem comunicar entre si?»), a resposta é claramemente "sim": o poder político em Angola fala em português.
A elite do MPLA, em grande percentagem, tem a língua portuguesa como "língua-mãe". É uma elite urbanizada que perdeu algo da sua raiz étnica. Isto pode ser controverso e poderá haver opiniões divergentes. Os dois presidentes de Angola, Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos, pelo que eu conheço, sempre se expressaram em português. Acompanhei um e outro em comícios em várias partes de Angola e sempre se expressaram em português. Tanto um como outro se enquadram naquilo que poderá chamar-se de grupo angolano de língua portuguesa. E por curiosidade: Neto gostava de acompanhar a refeição com um copo de vinho tinto português e no fim juntava ao vinho tinto duas ou três bolachas "Maria". José Eduardo dos Santos é um adepto ferrenho do Futebol Clube do Porto...
Quanto ao sotaque do português de Angola, ele é muito diferente do que se ouve em Portugal e no Brasil. Não tem nada a ver nem com um nem com outro, é muito característico. Basta ouvir os locutores africanos da RTP África... por exemplo: "trofêu" em vez de "troféu". Muitos sons abertos em Portugal e "muito abertos" no Brasil são pura e simplesmente fechados em Luanda. Por outro lado, o português angolano é "cantado" e "arrastado", influência ainda das línguas locais.
N.E. – Cf. O português em cadência angolana + Mambos da Língua – O tu-cá-tu-lá do português de angola + Crónicas de Edno Pimentel + Palavras de origem banta