Sobre a lista de verbos dicendi¹ em causa, de modo a confirmar ou rejeitar o preceito enunciado no manual de redação e estilo em causa, segundo o qual se trata de verbos incompatíveis com complementos frásicos, consultaram-se alguns dicionários de verbos, a saber, por ordem cronológica (siglas entre parênteses para facilitar a referência): Francisco Fernandes, Dicionário de Verbos e Regimes (DVR-Fernandes), 2001 (data da edição consultada, que mantém o conteúdo da 4.ª edição, de 1954); Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal (DPRV-Luft), 2003 (data da edição consultada, mas a 1.ª data de 1987); Francisco da Silva Borba, Dicionário Gramatical de Verbos (DGV-Borba) 1991; Winfried Busse, Dicionário Sintático de Verbos Portugueses (DSVP-Busse), 1994²; João Malaca Casteleiro, Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (DGVP-Malaca), 2007. Na lista que se segue, usam-se as siglas diante de cada verbo sempre que o uso de uma completiva introduzida por que surge atestado na fonte correspondente.
acusar que, DPRV-Luft, DGV-Borba
alertar que, DSVP-Busse
antecipar que, não consta
apontar que, não consta
aprovar que, DSVP-Busse;
assumir que, não consta
citar que, não consta
comentar que, DGV-Borba, DGVP-Malaca,
continuar que, não consta
defender que, DGVP-Malaca, DSVP-Busse
definir que, não consta
denunciar que, DGVP-Malaca, DSVP-Busse
desmentir que, DSVP-Busse, DGVP-Malaca
difundir que, DGV-Borba
divulgar que, não consta
enfatizar que, DGV-Borba
indicar que, DSVP-Busse, DGV-Borba
justificar que, DGV-Borba, DGVP-Malaca, DSVP-Busse
mencionar que, DSVP-Busse, DGVP-Borba, DGV-Borba
narrar que, DGV-Borba, DGVP-Malaca, DVR-Fernandes
proferir que, não consta
prosseguir que, não consta
referir que, DSVP-Busse, DGVP-Malaca, DGV-Borba
registrar que, DGV-Borba
relatar que, DGVP-Malaca, DGV-Borba
Conclui-se que a lista referida pela consulente é controversa, porque há verbos sobre os quais os dicionários consultados não se põem de acordo, quando se trata de admitir a possibilidade da seleção de um complemento frásico; são eles: acusar, alertar, aprovar, comentar, defender, denunciar, desmentir, defender, enfatizar, indicar, justificar, mencionar, narrar, referir, registar, relatar. Não obstante os dicionários consultados resultarem de diferentes visões e metodologias, nota-se que são os mais antigos – o DVR-Fernandes e o DPRV-Luft – que menos abonam o uso dos verbos listados com complemento frásico. Sendo assim, parece ser legítimo supor que tem havido uma clara evolução na sintaxe destes verbos, a qual não pode ser simplesmente classificada como deturpação. Se mesmo os mais recentes dos dicionários consultados têm utilidade como guias do bom uso, podendo ser usados no ensino, em relação a muitos verbos, afigura-se como drástica a rejeição da sua coocorrência com complementos oracionais. Por exemplo, será talvez muito tarde para reprovar o emprego de referir que, porque DVR-Fernandes e DPRV-Luft não o mencionam; o mesmo se diga acerca de defender que. Ideal seria existir um critério que pudesse identificar os usos que a este respeito a norma tem por corretos. Não é isso que acontece, pelo que cabe ao falante mais atento acompanhar o modo como o padrão linguístico e a lexicografia mais recente fixam os usos dos verbos em apreço.
Agradecemos as suas palavras finais.
¹ Os verbos dicendi – também denominados declarativos – são frequentemente utilizados no discurso direto, que, segundo Cunha e Cintra (1986, p. 630), o podem introduzir, arrematar ou nele se inserir. Constituem, por outro lado, uma subclasse verbal que encontramos frequentemente no domínio do jornalismo, como atesta a fonte que a consulente refere. São, pois, verbos que usamos para introduzir a fala de uma pessoa, ou, noutro contexto, a fala de uma personagem. Nesta subclasse de verbos, encontramos tanto verbos transitivos como ditransitivos, tais como acrescentar, aduzir, afirmar, alegar, argumentar, assegurar, comentar, concluir, concordar, confessar, decidir, declarar, dizer, garantir, informar, insinuar, jurar, justificar, observar, ordenar, proclamar, prometer, propor e sugerir. Acresce que os verbos dicendi, dada a sua natureza transitiva direta, selecionam um argumento interno com a relação gramatical de objeto direto, de natureza nominal ou oracional. A título de exemplo: «A testemunha disse a verdade.» No exemplo apresentado, «a verdade» constitui o argumento interno de natureza nominal selecionado pelo verbo dizer, podendo ser substituído, por exemplo, pela forma acusativa do pronome pessoal -a: «A testemunha disse-a.» O mesmo verbo, dizer, pode, como atrás referimos, selecionar um argumento interno com a relação gramatical de objeto direto de natureza oracional: «A testemunha disse que era verdade.» Assim, «que era verdade» constitui o argumento interno com a relação gramatical de objeto direto do verbo dizer. A ligação dos verbos dicendi a argumentos internos oracionais constitui, então, um caso de subordinação completiva, sendo que o elemento que introduz a generalidade das frases completivas finitas (tanto no modo indicativo como no conjuntivo) – é a conjunção subordinativa integrante (ou complementador) que. Mateus et al. (Gramática da Língua Portuguesa, 2003, p. 608) observam que «as frases completivas com a relação gramatical de objeto direto são sempre selecionadas por verbos e podem ser substituídas por um pronome demonstrativo invariável (como isto, isso) em posição pós-verbal […], e pelo pronome demonstrativo átono invariável -o». A par dos verbos dicendi, selecionam objeto direto oracional os verbos pertencentes às seguintes subclasses: verbos epistémicos (acreditar, imaginar, pensar...), verbos de inquirição (pedir, perguntar...), verbos volitivos e optativos (desejar, esperar, pretender, querer...), verbos declarativos de ordem (consentir, exigir, permitir...), verbos percetivos (ouvir, sentir, ver...) e verbos causativos (deixar, fazer, mandar...).
² No DSVP-Busse não se registam os verbos enfatizar, narrar, proferir e relatar.