O problema que coloca é interessante e também assaz escorregadio. Trata-se de um tema em que a norma e o uso se distanciam um pouco. Além disso, essa distância não é idêntica nas duas normas: portuguesa e brasileira. Sendo eu portuguesa, poderei dar uma explicação que não satisfaça plenamente a sua dúvida, por desconhecimento das especificidades da norma brasileira.
Os pronomes clíticos parecem estar a perder, de forma mais ou menos progressiva, o caso; ou seja, os falantes começam a revelar insensibilidade relativamente ao uso do dativo, correspondente ao complemento indirecto, e do acusativo, que representa o complemento directo. É cada vez mais comum ouvirmos dizer «Vi ele no cinema» em vez de «Vi-o no cinema». Muitas vezes é o pronome lhe que ocupa esta posição: o “lheísmo” a que o consulente se refere.
De alguma forma é o que acontece com o verbo auxiliar. Só não sei como explicar a ocorrência. Será apenas mais um caso de “lheísmo”, como sugere, ou será uma evolução por analogia com ajudar, verbo do mesmo campo semântico?
Quando o verbo ajudar tem complemento directo e um outro complemento preposicional que integra uma frase infinitiva com verbos como fazer, é possível a construção com lhe, como se ilustra em (1) e (2):
(1) Ajudo-o a fazer os trabalhos.
(2) Ajudo-lhe a fazer os trabalhos.
Com o verbo auxiliar, uma frase como (2), à luz da norma portuguesa, não é possível:
(3) Auxilio-o a fazer os trabalhos.
(4) *Auxilio-lhe a fazer os trabalhos.
Recordo que o asterisco (*) significa que a frase é agramatical.
Relativamente ao verbo socorrer, a situação parece ser um pouco diferente, pois no período clássico o verbo oscilava entre transitivo directo e transitivo indirecto, tendo evoluído, à luz da norma portuguesa, para transitivo directo, sendo, hoje, considerada agramatical uma frase em que ocorra o pronome lhe.
De qualquer forma, creio ser muito plausível a sua interpretação de que o exemplo que refere ilustra uma ocorrência de “lheísmo”, sobretudo porque, mesmo com o verbo ajudar, o lhe ocorre em construções que a norma não prevê, como em «Tenho-lhe ajudado muito».