Tem-se verificado uma completa anarquia em Portugal quanto à edição de trabalhos sobre o novo Acordo Ortográfico (Acordo de 1990, ou novo AO). Tem sido uma acção «sem rei nem roque» na língua, cada um a fazer o que lhe apetece, autopromovido a esse direito. Em dois dos dicionários já publicados notam-se soluções díspares. Algumas entidades responsáveis apareceram com ideias peregrinas que o bom senso condena e que não irão certamente vingar. Há publicações, até na imprensa, já com base no novo AO, sem haver ainda em Portugal uma lei na língua para esta nova ortografia, o que causa uma enorme barafunda, nos termos que são arbitrariamente escolhidos.
Tudo isto é o resultado de não ter havido, até hoje, uma entidade com prestígio em Portugal que estabelecesse lei na língua. Infelizmente a Academia das Ciências de Lisboa (ACL) deixou-se desprestigiar no seu dicionário de 2001 e pode haver dúvidas de que o seu vocabulário para o novo AO, anunciado até ao fim do ano, embora minimalista, inspire confiança suficiente na comunidade linguística culta. As esperanças estão agora depositadas no VOLP do ILTEC para o novo AO, que dispõe duma numerosa equipa de elevado nível académico, experiente, sensata e poderá fazer um trabalho efectivamente respeitado como lei na ortografia.
Quanto à unidade universal da língua, objectivo do Acordo de 1990, a Academia Brasileira de Letras (ABL) tem defendido que um vocabulário comum seria necessário só para as especialidades, termo não usado no texto do Acordo. Esqueceu que a designação apresentada no texto é muito abrangente e que é indispensável haver uma colectânea com os termos usados na língua comum, para que se possa dizer que todos são válidos na lusofonia.
Com esta desculpa, simplesmente justificou não ter esperado pela contribuição de Portugal para a língua comum. É também um critério centralizado no seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) no qual deixou a suspeição de pretender que fosse a base para toda a lusofonia [disse que considerou as nossas variantes de 1945, mas isso não é inteiramente verdade, como facilmente se pode verificar pela ausência de variantes do português europeu (PE)].
Quem, em Portugal e no Brasil, fez agora dicionários e vocabulários baseados no Acordo de 1990 esqueceu que estava nele estabelecido que existiria um vocabulário comum passados três anos da assinatura em 1990, e que o Novo Acordo entraria em vigor para todos os signatários passados quatro anos; após portanto existir uma língua que se poderia chamar já comum.
A subversão do espírito
do Acordo de 1990
Ora, antecipando-se com um vocabulário pretensamente servindo toda a lusofonia, mas centralizado nas suas variantes peculiares (PB), a verdade é que a ABL subverteu o espírito do Acordo de 1990, pondo-o em vigor no seu país sem haver ainda uma língua comum. Argumentou que, ratificado o Protocolo Modificativo por três países que o assinaram, o Acordo estava em vigor no plano jurídico externo; mas, na pressa (justa e compreensível, em valorizar a sua língua, como país emergente de grande valor na cena internacional), esqueceu a unidade almejada com o novo acordo ortográfico da língua portuguesa.
Não se critica a ABL por ter avançado com o seu VOLP. Há orgulho nosso no carinho da ABL pela sua e nossa língua. Aliás, estava implícito no disposto no Acordo de 1990 que cada país apresentaria as suas propostas nacionais para a língua da lusofonia, antes de o acordo entrar em vigor para todos os países. O que se critica é a presumível ideia de ser válido fora do Brasil. Deve ser considerado meramente a contribuição do Brasil para a língua comum, esta ainda longe do seu objectivo final.
Da mesma forma, um VOLP PE, igualmente como contribuição para se conseguir esse objectivo, deve agora também estar centralizado nas variantes particulares do português europeu. Se, por exemplo, o VOLP PB só adoptou as suas variantes nas duplas ém/êm, én/ôn; óm/ôm, ón/ôm, etc., não vejo motivo para nós introduzirmos já num VOLP PE variantes que só foram previstas para um vocabulário comum. Sem impedimento de adoptarmos as que nos sejam convenientes (veja-se o que o VOLP PB fez com “óptico” e “ótico”, que em Portugal têm fonia igual, por hipótese só “ótico” no novo AO, o que é inaceitável).
Concluindo, no espírito do Acordo de 1990, todos os dicionários e vocabulários para o novo AO que incluam já outras variantes da lusofonia são, assim, arremedos apressados e abusivos do vocabulário comum, pois têm termos arbitrariamente escolhidos, quando deviam ter os propostos pelos signatários do Acordo. Só neste caso se poderiam considerar trabalho com valor para a língua comum.
O papel conferido à Galiza...
De facto, além do VOLP PB, há também editores em Portugal que vão avançando com a inclusão nas suas publicações de termos de outras comunidades linguísticas de língua portuguesa, no espírito de estarem avançados no tempo ou na ideia de que um vocabulário comum é irrealizável a curto prazo. Não estão a ser úteis na unidade, a menos que tenham a certeza absoluta de que esses termos serão efectivamente propostos por essas comunidades.
Neste aspecto, há quem inclua já todos os termos oficiais da Academia Galega num VOLP PE (e parece que a ABL fez também uma promessa nesse sentido para a próxima edição). Dou um abraço de solidariedade à Galiza, mas considero a acção precipitada, no espírito do Acordo de 1990. Sublinha-se que a Academia Galega muito sensatamente apresentou o seu trabalho de 800 termos especificamente para ser considerado num vocabulário comum. Incluir já estes termos num vocabulário da língua portuguesa é dar um tratamento preferencial à Galiza, pois o documento passa a ser desde logo um princípio de vocabulário comum, marginalizando os países de língua oficial portuguesa efectivos subscritores do Acordo de 1990.
É preciso não esquecer que, depois do Acordo de 1990, há uma diferença sensível entre o presente na língua e o passado. Agora, no que se refere à língua comum, há a responsabilidade colectiva de unidade na língua, há a necessidade duma acção comum. Assim, o vocabulário comum deve ser o resultado duma acção efectivamente unitária, em que sejam ponderados (pelo grupo dos cientistas dos vários países disso encarregados) todos os termos susceptíveis de passarem a pertencer à língua portuguesa comum. Essa escolha não pode depender de pressas em afirmações pessoais ou devidas a razões comerciais. Tive, por exemplo, conhecimento dum texto escrito por alguém que introduziu tantos termos específicos de línguas nativas, que ficou quase ininteligível para mim, não obstante o autor pretender escrever em português.
... e o que cabe à CPLP
Em resumo, há necessidade de haver um vocabulário oficial para o PE, que mereça o respeito da comunidade linguística culta do PE; este vocabulário deve centralizar-se nas nossas variantes recomendadas e ser a nossa contribuição oficial para a língua comum. Paralelamente, deverá também haver uma acção concertada na obtenção de mais vocabulários de outros signatários do novo AO, propostos com o mesmo objectivo, certamente com o empenhamento da CPLP.
Penso que a CPLP está efectivamente vocacionada para promover a realização do vocabulário comum. Complementarmente, assim como foi sob a sua égide a decisão de se poder avançar para a entrada em vigor do Acordo de 1990 só com três ratificações do Protocolo Modificativo, também poderá ser sob a sua égide a decisão colectiva de o vocabulário comum avançar com as propostas “de todos ou só de parte” dos países signatários. A alteração fundamental em relação ao texto do Acordo de 1990 são as delongas não previstas, afinal sempre de esperar no assunto importante de alteração da ortografia, e necessárias no consenso para unidade, sempre difícil.
Leve o tempo que levar, o propósito de união é haver um dicionário comum. Este poderá finalmente ser realizado após haver o vocabulário comum. Permitirá, com segurança, usar uma só grafia da língua portuguesa, pois quem o seguir, português europeu, brasileiro, angolano, timorense, etc., estará a usar termos legais e com os diversos significados aceites legitimamente em todo o universo da língua portuguesa.
Nas instâncias internacionais, um dicionário comum, mesmo logo depois de um vocabulário comum, terá a grande virtude de se encontrar nele sempre a palavra que se procura, sem os problemas actuais. Por exemplo, alguém formado nas variantes de Portugal passa a encontrar nas publicações brasileiras, «com característica de língua comum», as palavras habituais em Portugal; e vice-versa, o que não lhe deixa dúvidas nenhumas, então, de que se trata da mesma língua… Presentemente, mesmo com todas as publicações que já existem com base no novo AO, as dúvidas subsistem.
Cf. Seixas da Costa diz que CPLP não funciona e que Brasil não se empenha na organização