Torna-se difícil analisar-se uma frase sem o contexto em que está inserida. Tratando a questão colocada pelo consulente acerca de um período de um texto, sem acesso ao excerto a que pertence, compromete a possibilidade de uma leitura objectiva, permitindo diferentes análises da mesma frase. Mesmo assim, detectam-se problemas estruturais que acabam por se traduzir em ambiguidade. Propõem-se duas leituras da frase:
1.ª) Se a analisarmos tendo em conta a liberdade poética que, por sua vez, usufrui da licença de se desligar da matéria (do tema, do assunto, do objecto à roda da qual o texto gira), tornando-se a poesia autónoma dessa realidade, mas tendo as marcas do seu criador, da época em que foi realizada, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente…, apercebemo-nos de que há a
elipse do termo de comparação, pelo que a frase completa será:
«A poesia tem uma realidade independente da matéria que serviu para sua
criação, é por assim dizer exterior a essa matéria, participando muito mais do espírito de seu criador, ou da época, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente em que foi criada [do que da matéria que serviu para a sua criação]»
Incluindo nesse texto este termo de comparação — «do que da matéria...», a frase ficaria mais clara e compreender-se-ia a utilização da conjunção coordenativa (disjuntiva ou alternativa) ou, pois as realidades enumeradas — «o espírito do criador», «a época», «a finalidade», «as circunstâncias» e «o ambiente» — estariam ao mesmo nível, não se destacando a primeira das restantes, aparecendo como realidades «que contribuem para a produção desse tipo de texto literário», como «termos da alternativa [que] não se excluem, tratando-se, assim, de um caso de estrutura de disjunção inclusiva (João Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Caminho, 1995, p. 379).
2.ª) Se não há elipse de um segundo termo de comparação nem este pode ser recuperado contextualmente, então a sequência «ou da época, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente em que foi criada» configura um termo da comparação que começa com «participando muito mais do espírito de seu criador...», estabelecendo um contraste entre «espírito do criador» e designações («época», «finalidade», «circunstâncias», «ambiente») que são especificações da expressão «matéria». Nesse caso, a conjunção ou parece estar em lugar de «do que». A proposta do consulente de colocar de que em vez de ou reporia a normalidade na frase. Porém, escreveríamos do que, em
vez de de que:
«A poesia tem uma realidade independente da matéria que serviu para sua criação, é por assim dizer exterior a essa matéria, participando muito mais do
espírito de seu criador do que da época, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente em que foi criada.»
Dada a existência da comparação, soluções como a que apresenta com «ao invés de» não nos parecem felizes:
«A poesia tem uma realidade independente da matéria que serviu para sua criação, é por assim dizer exterior a essa matéria, participando muito mais do espírito de seu criador,(?) ao invés da época, da finalidade, das circunstâncias, do ambiente em que foi criada»
Em relação à presença do nome do autor, não cremos que esse facto interfira na análise. Até porque todos temos consciência de que, como se diz entre nós «no melhor pano cai a nódoa», ou, num registo mais literário «aliquando bonus Homerus dormitat», ou seja, «até Homero dormita de quando em vez», deixando passar a sua gralha…