Não posso confirmar o uso de vós e respectivos possessivos na história mais recente do texto bíblico em português europeu. É certo que nessa variedade ela ocorre na oração conhecida por padre-nosso ou pai-nosso («Pai nosso que estais nos céus...). Verifico que, em edições recentes da Bíblia ou dos Evangelhos, é tu a forma de tratamento por quem se dirige a Deus, como acontece em duas versões do Cântico de Simeão, contido no Evangelho de São Lucas (Lucas 2, 29-32):
(1) «Agora, Senhor, segundo a tua palavra,/ deixarás ir em paz o teu servo,/ porque meus olhos viram a Salvação/ que ofereceste a todos os povos,/ Luz para se revelar às nações/ e glória de Israel, teu povo» (Bíblia Sagrada, Lisboa/Fátima, Difusora Bíblica/Franciscanos Capuchinhos, 5.ª edição, 2008).
(2) «Agora, Senhor, podes despedir o Teu servo/ em paz segundo a Tua palavra,/ porque viram os meus olhos a Salvação/ que preparaste ao alcance de todos os povos:/ luz, para se revelar aos pagãos/ e glória de Israel, Teu povo» (Bíblia Sagrada – Santos Evangelhos, Braga, Edições Theologica, 1994).
Que na primeira tradução portuguesa dos Evangelhos, datada do século XVII, se empregue também tu parece-me indicar que, no discurso bíblico, esta forma de tratamento é mais antiga em português do que vós. No entanto, o vós, por exprimir reverência — a que se deve à majestade de rei e imperadores — fez tradição, pelo menos em Portugal, de tal maneira, que, na edição da Difusora Bíblica/Franciscanos Capuchinhos (a chamada «Bíblia dos Capuchinhos»), se classifica a opção pela forma tu como uma novidade da 1.ª edição:
«Naturalmente, a Bíblia é a mesma, no que se refere aos textos originais; mas tudo o resto era novo: [...] as citações do Antigo Testamento no Novo em itálico, o nome de Deus em versalete e o tratamento de Deus por Tu.»
No Brasil, o uso de tu terá alguma ressonância arcaica. Em Portugal, esse uso recupera afinal um sistema medieval de forma de tratamento no qual se reservava o vós apenas para dois ou mais destinatários.
Quanto à questão de saber se existe uma norma, para este caso, penso que, a partir do que já expus, se podem aduzir argumentos no sentido de a escolha entre vós e tu reflectir estilos literários de épocas diferentes.