Afazeres recentes levaram-me até Bragança. Um reencontro com uma terra de boas gentes, de extraordinária gastronomia e de calor no coração. Encetei uma viagem geográfica a par de uma romagem de afetos e, «a môr disso», acabei também por ser levada numa espécie de peregrinação linguística.
É do conhecimento comum que em Trás-os-Montes se mantém o uso da segunda pessoa do plural. Aqui o vós está vivo, de perfeita saúde e é tratado com «agarimo». Ninguém se engana nas conjugações verbais, nem nas mais traiçoeiras, porque esta é a língua que se fala todos os dias e «amanhã ou passado» ninguém falará de outro modo.
Um ouvido habituado ao uso generalizado do você(s) sente-se um «cibo arrampanado» ao perceber a vitalidade do vós em frases do quotidiano: «Ides comer aqui? Sentai-vos nesse farragatcho». Todo este português sabe a viagem no tempo. A diferença de sonoridades obriga a uma atenção redobrada e estimula a perceção de que a possibilidade de presenciar distantes fases da evolução da língua num mesmo país e num mesmo tempo é extraordinária.
Por lá, os falantes não sentem que o pronome vós seja uma relíquia e todos se «amesendam» com ele, sem qualquer «cagança», «porí». É esta realidade que nos permite compreender a incompreensão e mesmo a revolta daqueles que ensinam a língua quando percebem que, mais para sul e noutras latitudes, se vai esquecendo a segunda pessoa do plural e há gramáticas onde já não se conjuga o vós, esquecendo uma existência que, por ali, está tão viva, como se vós fosse um «embeleque».
A verdade é que perante a ditadura dos meios de comunicação social (em particular, da televisão), que são responsáveis por uma ação de homogeneização linguística, os falantes creem, por vezes, que «falam mal» ou que devem evitar o uso de vós e das conjugações verbais que o acompanham.
Todas estas perceções são erradas. Na língua do povo não há certo nem errado. Há língua. Há identidade. E o vós da voz de Trás-os-Montes é do mais normativo que se possa imaginar e representa a vitalidade deste nosso Português que é, em simultâneo, língua de história e tradição e de modernidade e inovação. Como só uma língua maior pode ser!
Pequeno glossário de expressões transmontanas ¹
Agarimo – carinho
Amanhã ou passado – amanhã ou depois
Amesendar – sentar à mesa
À môr disso – por causa disso
Arrampanado – atordoado
Cagança - manias
Cibo – um bocado
Embeleque – estorvo, empecilho
Farragatcho – expressão que designa qualquer objeto
Porí - talvez
¹ Com base no blogue Lusofonias