As dúvidas que o consulente sente em relação ao significado das cinco expressões e/ou frases que nos apresenta devem-se, sobretudo, ao facto de tais expressões representarem actos de fala dos Açores (e de determinada ilha), do domínio da oralidade e de um determinado grupo social. Tratando-se quase de um código linguístico diverso do continental, não se torna fácil penetrar no verdadeiro sentido, principalmente, das expressões populares. Mas haveria outro modo de se recriar o universo das ilhas dos Açores — a verosimilhança — se não se reproduzisse a singularidade do seu falar?
Não é por acaso que se diz que Mau Tempo no Canal é um romance da açorianidade, onde o regionalismo e o arcaísmo dos falantes açorianos se cruzam, o que dificulta a sua descodificação, pois «o regionalismo nemesiano é regionalismo vivo, recolhido dos actos de fala da gente dos Açores» (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a Obra e o Homem, Lisboa, Arcádia, 1978, p. 133). Num estudo sobre a obra de Vitorino Nemésio, José Martins Garcia afirma, também, que «Nemésio recuperou um mundo. Dos nomes das coisas aos nomes próprios, da tradição mítica ao vocabulário inglês deturpado em boca de marinheiro açoriano» em que se torna evidente a «tentação de reproduzir em páginas de ficção as peculiaridades fonéticas da fala» (idem).
Perante esta especificidade, poder-se-ia esperar que houvesse outros estudos mais aprofundados sobre a linguagem da obra de Nemésio — talvez um dicionário — em que constassem todas as expressões da açorianidade presentes nos seus textos e, obviamente, a explicação do seu significado. Mas a realidade é que ainda não há notícia de nenhuma obra do género. Resta-nos, portanto, analisar cada expressão no contexto em que está inserida, o que acaba por ser a realidade da leitura/análise literária.
Importa salientar que as duas primeiras expressões — «sinais dobrados» e «dormir a lastro» — surgem no discurso da velha Mariana, quando conta a história do rapto da freira da Glória, discurso esse onde sobressai a singularidade fonética da sua fala.
Das duas expressões é de destacar a segunda, «dormir a lastro» (cap. X, p. 126), mais conhecida, talvez pertencente ao falar da ilha Terceira, pois surge num estudo sobre a linguagem dessa ilha (Maria Alice Borba Lopes Dias, Ilha Terceira, Estudo da Linguagem e Etnografia, 1982), significando «dormir em cama feita no chão», uma vez que lastro (sub. masc.) é uma «palavra que se emprega […] precedida de preposição a, para designar uma cama que se improvisa, pondo o colchão sobre o sobrado, e assim é uso ouvir-se: uma cama a lastro» (idem).
O mesmo não sucede com «sinais dobrados» (cap. X, p. 124), sobre a qual não encontrámos qualquer referência, deixando ao nosso critério o seu sentido. Como esta expressão se refere ao toque do sino da torre do convento em que se encontrava a senhora morgada, toque esse que parecia reproduzir o seu sofrimento, a sua dor (explícita pelas suas lágrimas que corriam como uma ribeira), penso que se pode associar ao som do dobrar a finados (sinais dobrados = som/sinal do dobre a finados). Repare-se no contexto em que aparece a expressão: «Nas torres do cunvento parcio sinais dobrados! A senhora morgada só dezia: «Toca, sino, im riba das minhas cadeiras, que se vai a luz dos mês olhos»; e aquela era ua ribeira de lágrimas».
Por sua vez, da leitura que se fez da expressão «Como Nós-Padre e Nós-Pedro que é tudo estravanquear» (cap. XI, p. 138), retirámos as seguintes conclusões: tratando-se do discurso da criada velha de Mateus Dulmo em que elogia o seu amo — «Ai, graças a Deus, meu amo é muito alegre, muito amigo de dar… tem a casa sempre farta e cheia de tudo quanto há! Também não lhe falta com quê!» —, fazendo o contraste das suas qualidades (agradável, generoso, preocupado com o bem-estar e com a abundância em casa) com a irresponsabilidade e esbanjamento dos outros — «Nós-Padre e Nós-Filho que é tudo estravanquear» — esta frase transparece uma atitude crítica a uma prática comum — a de estragar, a de esbanjar de forma desgovernada.
Quanto a «meninas bispetas» (cap. XV, p. 164), expressão usada por Margarida, decerto, de forma irónica , pois está implícita a crítica e o desprezo pelas jovens a que se refere — «[…] era preciso cautela com meninas bispetas do Faial […] mas este género de meninas de "iluminação à veneziana", que fazem biquinho e a quem os papás compram piano e vestem de seda liberty, não era o seu género. Antes a "nossa Rosa"» —, que se caracterizam pela hipocrisia, pela futilidade, pela vaidade. Representam, tal como o consulente propôs, o grupo de «meninas ricas e muito mimadas», vazias, artificiais e petulantes.
Relativamente à última expressão apresentada, «Cal’te sique» (cap. XV, p. 164), não restam dúvidas de que se trata de uma expressão popular que procura reproduzir um acto de fala do género «Cala-te sequer», que poderá corresponder a «Cala-te, mas é», «Cala-te, boca».
Na realidade, «Cal'te sique» é um exemplo comprovativo de que Mau Tempo no Canal é um «romance escrito num alfabeto fonético» (José Martins Garcia, ob. cit., p. 133).