Tal como já foi dito na resposta N.º 26748, os termos e as expressões dos falantes açorianos, muitas vezes registados de modo a representar a sua pronúncia peculiar, tornam-se um entrave à compreensão do seu significado e, quantas vezes, dificultam a interpretação do sentido de toda a frase.
Das expressões que o consulente, desta vez, nos apresenta, destaca-se uma palavra que, para nós, é bastante invulgar, mas em que detectamos algo de negativo, de desagradável, pois surge em contextos em que parece estar associada a motivo de crítica — marrajanas presente em dois trechos do cap. XII: no discurso irónico de quem passa «na rua de Jesus e visse luz na vidraça [do escritório do «saguão» de Januário Garcia], referindo-se-lhe assim: «Lá está o Garcia a fazer marrajanas…» (Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Lisboa, Relógio d’Água, 2004, cap. XII, p.143) e, também, no final do capítulo, quando o narrador recria o olhar/o pensamento de Januário sobre os advogados da Horta:«no cível, o dr. Luís da Rosa — não lhe ficando atrás, para uma marrajana, o espertalhão do Leal». Como justificativo do atributo de «espertalhão», uma marrajana parece traduzir algo não muito sério nem honesto. Ora, o termo marrajana (sub. f.) significa precisamente «aldrabice», segundo o estudo de Maria Alice Borba Lopes Dias sobre a linguagem da ilha da Terceira (Maria Alice Borba Lopes Dias, Ilha Terceira, Estudo da Linguagem e Etnografia,1982, p.466).
Não encontrámos nessa mesma obra referência a nenhum dos outros termos e expressões que nos coloca, talvez por não serem considerados pela autora como regionalismos açorianos. Resta-nos, portanto, procurar descodificar o seu sentido a partir do contexto em que surgem.
Relativamente a mesa de pé de burro (cap. XII, p. 140): trata-se, decerto, de uma peça de mobiliário que, de acordo com o texto, se destaca na sala de jantar da «casa da Ribeira dos Flamengos, comprada por Januário ao Frade do Salão, que a comprara a Diogo Dulmo com recheio e tudo, conservava-se por dentro no dispositivo em que os Clarks a tinham ao tempo da laranja: quartos com camas de torcidos, a casa de jantar abaixo, descendo-se uns degraus, com mesa de pé de burro […]». Assim como o narrador evidencia as «camas de torcidos» nos quartos, a «mesa de pé de burro» é a peça que valoriza a sala de jantar. Tratando-se de uma casa que pertencera a uma família inglesa de um estatuto elevado, a sua decoração destaca-se pelo requinte, razão pela qual o narrador as descreve como marca de diferença. A «mesa de pé de burro» deve ser uma mesa cujo pé, ao centro, deve ser uma peça forte, robusta e trabalhada. Talvez seja pelo fa{#c|}to de suportar a mesa, que se designe tal pé de «pé de burro». No Continente, é conhecida a «mesa de pé de galo», mesa pequena cujo pé tem a forma de uma pata de galo (com três pontas). Enquanto esta é um acessório na decoração de uma sala, a «mesa de pé de burro» do romance é uma peça central, dominante e essencial na sala de jantar.
Quanto à palavra reseima, incluída na frase «o cheiro adocicado à reseima do laranjal» (Cap. XII, p. 144), aparece associada a algo do laranjal que produza um cheiro adocicado. Sabendo que a pronúncia açoriana é diferente da do português europeu continental e que Mau Tempo no Canal é um «romance escrito num alfabeto fonético» (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a Obra e o Homem, Lisboa, Arcádia, 1978, p. 133), relacionámos, tendo em conta a semelhança fonética e gráfica, reseima com resina. A resina escorre no tronco das árvores e tem um cheiro adocicado. E, então, de laranjeiras…!
Por sua vez, a expressão «travar-lhe do braço» (Cap. XIV, p. 156) — «Roberto, com ares de mistério, travou-lhe do braço lentamente e subiram até à varanda» — não nos causa muita estranheza. «Travar» significa, para além do sentido mais comum, «agarrar, tomar, segurar» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora). Portanto, nessa frase, deverá ter o sentido de «segurou-lhe o braço», «pegou-lhe no braço», gesto afectuoso para conduzir Margarida à varanda.
Já cachimbeta parece sugerir uma espécie de alcunha pela qual «o guarda do Granel do Clark» é conhecido, talvez porque tal personagem tenha o hábito de fumar cachimbo. Como qualquer alcunha, esta surge carregada de troça, de sarcasmo, o que é denunciado pela forma jocosa do diminutivo cachimbeta. Reparemos no relato que o narrador faz do modo como o guarda do Granel é imitado por Ângelo: «O guarda do Granel do Clark, o cachimbeta!... — A cara de Ângelo, debruçado nas costas de uma cadeira, tomara a expressão de Roberto à janela da rua do Mar. Com um lápis na boca a fingir de cachimbo, parecia ter diante as marés do Canal» — e motivo de gozo do grupo — «Laura, com um ataque de riso, balouçava-se no canapé; as lágrimas saltavam-lhe aos dedos levados aos olhos» (Cap. XVI, p. 169).