DÚVIDAS

Sobre a ocorrência de crase

Primeiramente, parabenizo-os pelo ótimo trabalho realizado! Este site é realmente muito bom e tem-me ajudado muito!

Peço, também, que me corrijam se cometi algum equívoco quanto à existência das regras citadas abaixo.

Estive estudando a ocorrência da crase e percebi que diante da palavra casa, quando tem sentido de «lar» e quando não for especificada, não é admissível o uso do artigo a, não havendo assim a crase.

Por exemplo:

«Saí de casa cedo» (casa no sentido de «lar» — não admite artigo).

«Fui à casa da Maria» (casa no sentido de «lar», mas especificada — admite o artigo).

Também li que o pronome indefinido outro só admite crase quando determinar outro substantivo, subentendido ou não. Sobre essa regra tenho dúvida se é valida ou não.

Por exemplo:

«Saí desta praça e fui "a" outra» («outra praça qualquer» — não admite artigo).

«Saí desta esquina e fui "à" outra» («a próxima esquina e não qualquer esquina» — admite artigo).

Porém a minha dúvida surge com o uso da palavra casa e da palavra outra na mesma frase. Qual regra prevalecerá?

«Há duas casas nesta rua. Eu saí desta casa e fui a outra casa.»

Neste caso há duas regras aplicáveis:

— ou não há artigo (não havendo a crase) porque casa tem sentido de «lar»;

— ou há artigo (havendo a crase) porque outra indica a próxima casa e não uma casa qualquer.

Se a regra do outro for válida, qual das duas regras eu devo aplicar?

Muito obrigado!

Resposta

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras iniciais.

É importante não confundir um caso particular, como é o do uso de casa sem artigo definido, com a situação geral criada pela ausência de artigo. Quero dizer que concordo que se possa interpretar como «lar» a palavra casa, no singular, em expressões como «a (preposição) casa», «em casa», «para casa», «de casa», acompanhadas ou não de possessivo («a minha casa», «em tua casa, etc.). Mas este uso é idiomático, isto é, encontra-se como expressão fixa na língua.

Pelo contrário, na maioria dos casos, a presença de artigo definido ou a ausência do mesmo não correspondem a significados diferentes do mesmo item lexical; o que acarretam são diferentes interpretações dos grupos nominais em que esse item lexical intervém: em «visitei as casas da aldeia» pressupõe-se a identificação de um conjunto de casas pertencentes a uma certa aldeia (não se trata de umas casas quaisquer); mas em «visitei casas da aldeia», apenas se sugere a existência de casas não identificadas, em número não especificado (são umas casas quaisquer).

Quanto ao uso do determinante e pronome indefinido outro, não há regra, mas sim um contraste entre dois usos: com artigo («o outro...»), refere uma entidade alternativa que está identificada como fazendo parte de um par («não quero esse livro, quero o outro»); sem artigo, pode significar «diferente», «qualquer» («não quero esse livro, quero outro») ou «mais um» («já tenho um exemplar, mas quero outro»).

Sendo assim, a respeito da sequência «Há duas casas nesta rua. Eu saí desta casa e fui à/a outra casa», o critério que envolve a sinonímia com lar não se aplica à expressão constituída por «outra casa». O que interessa para aplicação da crase é saber se, depois da preposição a, a expressão formada por outro e casa (ou um substantivo diferente) se refere a uma entidade que o contexto do discurso pressupõe como conhecida («vou à outra casa» = «há uma outra casa»). Por conseguinte, em relação à sequência de frases proposta, afigura-se mais natural a que inclui a crase — «Há duas casas nesta rua. Eu saí desta casa e fui à outra casa (que referi como existente nesta rua)» —, por «à outra casa» reenviar para a que já foi identificada em contexto, na primeira frase, como sendo uma das duas casas existentes na rua. Contrastando com esta situação, a versão alternativa, sem crase, parece pouco coesa, sugerindo-se mediante «a outra casa», sem artigo, a existência de uma terceira casa que faltou mencionar («fui a outra casa qualquer para além desta donde saí e da outra que também existe nesta rua»).

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